Onze músicas de Gilberto Gil, uma delas dividida com Jorge Ben Jor. Roberta Sá está hoje na condição em que muitas intérpretes gostariam.
Ela conta que a leveza das canções do disco Giro, sem nenhuma pretensão de Gil por descobertas ou caminhos revolucionários, espelha o clima em que tudo começou. Precisamente na casa do jornalista Jorge Bastos Moreno, com Gil e Roberta sentados à mesa do influente colunista político, morto em 2017.
No início, havia quatro músicas. Ao lado do filho de Gil, Bem, que se tornou seu produtor, Roberta entrou no estúdio. “Gravamos as quatro para saber qual era a cara do projeto.” A ideia caminhou e Gil passou a compor pensando na voz de Roberta. “Ele disse que queria que eu gravasse sambas.”
E vieram O Lenço e o Lençol (“Quem me quiser que veja, eu sou imensa / Eu sou intensa como a luz do sol / quem quiser que veja a diferença / O tamanho do lenço e do lençol”) e A Vida de Um Casal (“A vida de um casal é uma escada / que não se acaba nunca de subir / degrau após degrau, longa escalada / E o medo permanente de cair”).
Gil compondo para alguém é um feito. Não se trata exatamente da mesma composição que faria a si mesmo, como se procurasse a canção tendo como lanterna a voz, a melodia, não o seu violão. É curioso perceber um Gil bastante relaxado na criação, sem tensão em nenhum momento, apenas se entregando aos caminhos que a primeira ideia o leva. Sem viagens maiores, um Gil mais pop. E é assim que conduz desde Giro, um samba duro baiano, a Afogamento, a parceria que havia no início entre Gil e Jorge Bastos Moreno.
A ideia de ter Jorge Ben Jor no disco foi de Roberta. “Estávamos em um jantar, em um desses eventos sociais, e Jorge disse que gostaria de gravar qualquer coisa. Eu disse: Então faça!. E ele fez mesmo.” Duas semana depois, já havia algo (um tempo recorde quando se trata de uma encomenda a Jorge Ben). A música que saiu tem título daqueles sambas-rock dos anos 1970, Ela Diz que Me Ama, assinada junto com Gil, retomando parceria depois de 45 anos. Os shows de lançamento em São Paulo serão 22 e 23 de junho, no Sesc Pinheiros.
O violão de Gil começa imitando o que seria a pegada de Jorge. Jorge não toca, parece ter feito promessa para não encostar mais no instrumento, mas seria perfeito fazê-lo tocar ao lado do parceiro. Os sopros do samba de gafieira entram e apontam para um dos melhores momentos de Jorge, uma criação que ele mesmo não faz a si próprio há muitos anos. Tudo muito simples, mas cheio de um suingue irresistível. Jorge mesmo canta pouco, fazendo umas respostas no refrão do “ela diz que me ama”.
Roberta diz que foi desafiada por Gil em algumas composições. “Quando eu dizia que uma parte estava aguda, ele dizia que eu tinha que ganhar aquela região, ganhar aquele agudo. Precisava me reinventar, ou ficaria cantando A Vizinha do Lado, que gosto muito, a vida toda.”
A existência de seu disco é também um feito do Gil pós-internação de 2016, quando o cantor precisou fazer um tratamento renal, conforme informou à época sua assessoria de imprensa. O ser criativo que saiu do hospital não era exatamente o mesmo que havia entrado. Em entrevistas à época do lançamento de seu álbum Gilbertos Samba, em 2014, uma homenagem a João Gilberto, ele dizia que seria um homem feliz se passasse o resto da vida regravando músicas de que gostava. Antes de João, já havia homenageado Bob Marley e Luiz Gonzaga.
Os tempos de recuperação parecem ter despertado sua vontade de criar. Gil saiu do hospital com um disco quase pronto, cheio de músicas novas, algumas delas dedicadas aos médicos que cuidaram de sua saúde. Roberta ouviu uma frase da qual não se esquece. “Ele disse que percebeu estar recobrando a saúde quando sentiu apetite. O primeiro apetite foi do alimento, o segundo, da criação.”
O disco festivo de Roberta tem seu lugar à parte da produção tensa que reflete os lançamentos de música brasileira nos dias de hoje. “Alguém tinha que levantar a bandeira do afeto, ela não é menor do que a do protesto. Precisamos ter algum tipo de esperança.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.