No começo do mês de fevereiro de 1998, eu tive oportunidade de escrever, nestas mesmas páginas almanaquinas, um artigo focalizando a temática/problemática da saudade. No texto em apreço, a par de outras considerações genéricas de natureza exegética, eu tentava desmistificar o que me parecia um excesso retórico de alguns, tanto portugueses como brasileiros, que viam na palavra portuguesa saudade um vocábulo único, sem rival em qualquer outra língua. Dentro dessa ordem de idéias, eu apontava como termos afins o espanhol ?soledad?, o galego ?morriña?, o catalão ?anyoranza? ou ?añoranza?, os franceses ?regret? e ?mal du pays? e o inglês ?homesikness?.
Em 19 de fevereiro do mesmo ano, o dileto amigo (e leitor honrosamente consuetudinário dos meus escritos) Dr. Caetano Munhoz da Rocha Netto, filho do grande Bento cujo centenário de nascimento comemoramos no dia 17 de dezembro passado, escrevia-me uma extensa epístola onde, depois de algumas considerações gratificantes e massageadoras do ego, tinha oportunidade de contestar frontalmente a minha tese pessoalíssima.
Quando eu me preparava para responder, através de outro artigo, rendendo-me à argumentação do Dr. Caetano, aconteceu o inesperado: um grave acidente ocorrido no dia 24 de fevereiro, manteve-me afastado, depois de três cirurgias, não apenas da escrita mas também da leitura. Isso durante mais de três longos e penosos anos. Por outro lado, a missiva do meu amigo acabou por extraviar-se no meio da minha ?hiléia amazônica? de livros e papéis distribuídos sem método, ou melhor, anarquicamente, por inúmeros armários e gavetas sem conta. E eu confesso até, ?mea culpa, mea maxima culpa?, que cheguei a esquecer a própria carta. Há pouco tempo, inesperadamente, tive a satisfação de reencontrar a carta perdida. E reli com prazer os parágrafos em que, num estilo quase aristocrático, herdado certamente de Mestre Bento, Caetano tinha oportunidade de me contraditar, com elegância que não excluía uma espécie de ?ostinato rigore? conceitual.
Escrevia, ou melhor, escreve o missivista, a certa altura: ?A saudade é realmente uma das palavras mais importantes da língua portuguesa. Concordo que seja um sentimento universal, mas vivido cotidianamente em toda a sua abrangência, que ultrapassa as definições dos dicionários, apenas na cultura luso-brasileira, em Portugal e no Brasil, considerados com rara inspiração por Antônio Ferro como ?Estados Unidos da Saudade?. E continua Caetano mais adiante: Assim ?soledad? é mais solidão, tristeza; ?morriña? é mais melancolia; ?regret? é mais pesar, desgosto, arrependimento, queixa, remorso; ?mal du pays? tem três palavras; ?homesikness? é mais nostalgia, saudade de casa, da pátria, do lar. Já a saudade ? prossegue ? pode resumir tudo: amor, solidão, nostalgia, falta, melancolia, pesar, desgosto, remorso, lamento, mágoa, comoção, arrependimento, lembrança, queixume. Pode definir idéias e sentimentos antagônicos: prazer e dor, alegria e tristeza, doçura e amargor, presença e ausência, vazio e plenitude, ser e não ser, ter e não ter, tudo e nada. A palavra portuguesa exprime por si só o que outras línguas necessitam de páginas e páginas para descrever?. Respondendo ao Dr. Caetano com um pequeno atraso de oito anos (mas o que são oito anos em face da Eternidade?), eu apenas posso dizer isto: o caro amigo me convenceu. Confesso a minha conversão, em toda a plenitude, à sua tese. E me permito acrescentar mais alguns esclarecimentos adicionais do tema em pauta.
A saudade chegou a determinar o surgimento, em Portugal , no período de 1910/1930, de um movimento poético intitulado Saudosismo, que tinha a revista A águia como veículo e como líder inconteste Teixeira de Pascoais. Integravam o grupo, ou tinham afinidades mais ou menos intensas com ele, nomes como Mário Beirão, Augusto Casimiro, António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Afonso Duarte, João de Barros, Antônio Sérgio, o grande ensaísta, Raul Proença, Jaime Cortesão, que viria a tornar-se um notável historiador, e mesmo o filósofo Leonardo Coimbra, que chegou a definir uma quase metafísica da saudade, vislumbrando nela uma espécie de vertigem do absoluto.
O certamente grande poeta (mas também ensaísta e biógrafo) que foi Teixeira de Pascoais, chegou a proclamar que via na religião revelada da saudade o próprio sangue espiritual da raça, o seu estigma divino, o seu perfil eterno. Num ensaio crítico publicado em 1912, intitulado Sobre a moderna literatura portuguesa, o então jovem Fernando Pessoa, depois de afirmar que Teixeira de Pascoais é um dos maiores poetas vivos e, certamente, o maior poeta lírico da Europa, escrevia a certa altura: Os saudosistas representam e consubstanciam, com o seu movimento, um ?Weltanschauung? eminentemente português.
Mais recentemente, num extenso (e admirável) prefácio para uma antologia que organizou, intitulada ?A saudade na poesia portuguesa?, o romancista e ensaísta Urbano Tavares Rodrigues escreve a certa altura, quase concluindo o seu longo texto: Tornando pela última vez ao saudosismo, cúpula intelectual de uma saudade cósmica que sensibiliza, que animiza a natureza ? materialização do espírito e espiritualização da matéria para Fernando Pessoa ?, chegamos à exaltação sebastianista deste vate hiperlúcido e ao mesmo tempo, paradoxalmente, imerso no irracionalismo e no ocultismo, sempre tão autêntico e tão mascarado. Isso porque cada verdade sua é uma das suas máscaras,e cada máscara sua é mais um jogo, comédia mental, mas também do seu sangue e dos seus nervos(…); o poeta-crítico leva a saudade às suas últimas conseqüências analíticas e mágicas, declarando que os saudosistas portugueses são os pioneiros de uma futura civilização européia, que será uma civilização lusíada, assente num transcendente panteísmo.
Propõe então Pessoa, para quando surgir o poeta supremo da raça (e vai ser esse, ou quer sê-lo ? e o é, de certo modo ? o poeta da Mensagem), uma imensa aventura existencial: a partida em busca de uma Índia nova ? que não existe no espaço ? em naus construídas com aquilo de que os sonhos são feitos.
Como se vê, durante alguns momentos o nosso pensamento navegou nas alturas, em mares de nuvens quase metafísicas. É bom (e fará bem) descer à ?terre des hommes?, ou mesmo ao mar dos homens, onde estes são barcos que se cruzam dentro da noite, como no belíssimo poema de Longfellow.
Lembro, para concluir, duas quadras populares que muitas vezes escutei, na província mágica, no reino onírico da infância, menino de calças curtas, cantadas por ceifeiras entre o ouro dos trigais, com seu típico sotaque beirão. Aí vai a primeira:
Saudade, palavra amarga.
Aquela que a inventou,
a primeira vez que a disse,
com certeza que chorou.
A segunda é praticamente antitética em relação à primeira:
Saudade, palavra doce.
Aquele que a pressentiu,
a primeira vez que a disse,
com certeza que sorriu.
É isso aí, amigo Caetano Munhoz da Rocha Netto. Nessa ambivalência nítida, nessa dicotomia clara, nessa antítese transparente ? alegria/tristeza, prazer/dor, sorriso/lágrima ? reside a essência, ou melhor, a quintessência, a substância, a ?ultima ratio? desse sentimento belo e profundo que Almeida Garrett assim definiu:
Saudade, gosto amargo de infelizes, delicioso pungir de acerbo espinho.
Eu próprio, numa simples e despretensiosa quadra, tentei colocar um dia a minha privativa concepção de saudade. Aí vai ela:
Essa palavra, saudade,
lembra uma doce amargura.
Porém, sentida na alma,
é sempre amarga doçura.
E como diria o imenso Shakespeare, the rest is silence.
