Há precisamente dois séculos, no ano de 1806, o gênio que levou na pia batismal o nome de Johann Wolfgang von Goethe (o cargo de ministro do pequeno ducado de Weimar acrescentaria ao seu nome de berço o ?von? aristocrático), estava trabalhando duramente, dando os retoques finais e o acabamento imprescindível na versão definitiva desse monumento literário (e estético) que é o Fausto.
É bom que se diga que o mestre de Frankfurt am Main, o excelso Goethe (1749?1832) vinha se debruçando na obra desde 1774, ano em que começou a rascunhar aquele que ficaria conhecido como o Ur-Faust, ou seja, o Fausto primitivo. A obra-prima seria finalmente editada em 1808.
Mas, achtung. Atenção: tratava-se, pura e simplesmente, da primeira parte do Fausto, já que uma segunda parte ? importantíssima ? seria escrita durante os anos da velhice do colosso de Weimar, concluída em 1830 e editada somente dois anos depois da morte do autor.
Significa isso dizer que, a rigor, nós podemos falar da existência de duas obras: o Primeiro Fausto e o Segundo Fausto, que de certa forma se complementam e completam, em que pese as características essenciais que, de certa forma, diferenciam as duas partes fáusticas. Entretanto, no seu conjunto orgânico, na sua integralidade significante, trata-se de uma Obra maiúscula que pode ? e deve ? ser colocada a par dos grandes poemas da história da literatura universal. Ela certamente integra o panteão hierático em que pontifica uma plêiade de obras de igual ou semelhante magnitude estética. É o caso da Odisséia e da Ilíada homéricas, da Eneida virgiliana, da Divina Comédia dantesca, da Jerusalém Libertada de Tasso, de Os Lusíadas de Camões, e do Paraíso Perdido de Milton.
Com a sua admirável poesia lírica e, sobretudo, com o ?Fausto? duplo, vale dizer, uno e plural, Goethe tornou-se o sumo-pontífice indiscutível da poesia alemã. Mais: ele ombreia com os maiores poetas da humanidade, de Homero a Camões, de Virgílio a Dante, de Tasso a Milton, de Ariosto a Shakespeare, de Baudelaire a T. S. Eliot, de Rimbaud a Fernando Pessoa, W. B. Yeats a Pablo Neruda, de Valéry a Kavatis, de Rafael Alberti a Drummond. E tutti quanti. E com esse tutti quanti estratégico eu pretendo englobar mais uma dúzia de nomes cuja ausência o leitor atento deve ter estranhado. É o mal das nominatas: quando não são discutíveis estão, indubitavelmente, incompletas. Mea culpa.
Mas o que vem a ser verdadeiramente o Fausto goetiano, cuja releitura acabo de fazer, pela quarta ou quinta vez nos últimos quarenta anos, com o deslumbramento de sempre? Trata-se, antes de mais nada, de uma tragédia de cunho existencial e psicológico, de um poema dramático, a um só tempo épico e lírico. Epicamente lírico e liricamente épico. Mais: trata-se de uma estrutura poemática densa e profunda, por excelência filosófica, metafísica, ideológica. E este último adjetivo é utilizado, não no sentido político, mas no cognitivo, pensante, racional.
O Fausto, porém, é ainda mais do que isso: é um poema enciclopédico, quase uma paideia, pela cultura e erudição que revela; polimorfo e multímodo, pelos tempos e modos que assume; poliédrico e protéico, pelas facetas irisadas que ostenta e exibe, para quem quer que, como diria Camões, tenha olhos de ver. Se quisermos achar o modelo, o protótipo, o paradigma, o arquétipo mais adequado para confrontar com o Fausto, a escolha só pode ser uma: a Divina Comédia, que eu às vezes me sinto tentado a rebatizar como a Humana tragédia. Desenrolada, post mortem, no inferno, no purgatório e no paraíso.
Por isso mesmo, é possível afirmar, ou melhor, proclamar, urbi et orbi, que Goethe é o Dante moderno, da mesma forma que Dante foi o Goethe medieval. Ambos são irmãos gêmeos em termos de Arte. E de Gênio.
Na textualidade cantante (e encantante) do Fausto encontram-se, sem dúvida, alguns dos mais belos versos da língua alemã. Equivalentes aos que Camões, Pessoa e Drummond escreveram em português; Dante, Montale e Ungaretti, em italiano; Shakespeare, Milton e T. S. Eliot em inglês; Rimbaud, Mallarmé e Paul Valéry, em francês; Homero, Séferis e Caváfis, em grego; Guillén, Neruda e Aleixandre, em espanhol; Puchkin, Blok e Pasternak em russo; etc.
Como não poderia deixar de ser, o Fausto foi traduzido em dezenas de línguas. E, dada a dificuldade e a complexidade inerentes ao poema, houve necessidade de mais de uma tradução, nas diversas línguas. Em português, pelo que sei, há sete ou oito traduções. Cito as quatro principais, por ordem cronológica: a do português Agostinho D?Ornelas, a do também luso Castilho, e as dos brasileiros Sílvio de Bastos Meira e David Jardim Júnior.
Estou plenamente convencido de que as melhores são as do lusitano Agostinho de Ornelas Vasconcelos Rolim de Moura, diplomata de carreira, feita a partir do original alemão, que dominava com perfeição; e a do brasileiro Sílvio de Bastos Meira, jurista emérito e biógrafo exemplar de Augusto Teixeira de Freitas, jurisconsulto do Império que se notabilizou pela consolidação do Código Civil, que seria desdenhado pelo Brasil e copiado pela Argentina. A tradução de Meira foi feita igualmente a partir do alemão. A segunda tradução, em termos cronológicos, é talvez a mais famosa, por ser de autoria de um dos clássicos da prosa da nossa língua, Antônio Feliciano de Castilho, que ao lado de Alexandre Herculano de Carvalho Araújo, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garret e Camilo Castelo Branco, integra o quarteto de ouro do Romantismo português. Disse a mais famosa? Acrescento: talvez a pior das quatro, na medida em que Castilho se revelou, em toda a plenitude, fiel ao brocardo italiano: ?traduttore, tradittore?. Sim, em nome da métrica e, sobretudo, da rima, Castilho traiu abundantemente o espírito e o pensamento do alemão, até porque ele se baseou em traduções francesas. Foi também com base na tradução francesa de Gérard de Nérval que Jardim produziu a sua, que, por ser em prosa, não entusiasma demais o leitor eventual.
Voltando ainda a Castilho: foi um grande prosador, mas poeta medíocre que, graças à arte, ou melhor, à técnica versificatória, em que era exímio, foi capaz de produzir até bons versos, mas incapaz de produzir boa poesia. Daí a crítica que lhe foi feita por Antero de Quental, na famosa carta Bom senso e bom gosto, em que o sonetista que deslumbrou Unamuno tinha oportunidade de afirmar, a certa altura: Castilho domina plenamente a Forma, mas falta-lhe a Idéia. Essa afirmação, conjugada com a alusão aos cabelos brancos de Castilho, referendada por Teófilo Braga, que foi mais longe, referindo-se à condição de cego do mestre do Romantismo, acabou por deflagar a célebre Questão coimbrã, que culminaria com um duelo ? felizmente incruento ? entre santo Antero (para utilizar o adjetivo de Eça de Queiroz) e Ramalho Ortigão, a ramalhal figura a que aludia também o pobre homem da Pövoa do Varzim.
Parece que andei divagando um pouco, fugindo ao tema central que me propus focalizar, aqui e agora. Retorno, portanto, a Goethe e ao seu Fausto. Ambos, o autor e o personagem (este, aliás, uma figura histórica real, não fictícia), são nomes emblemáticos, arquetípicos, que enriquecem, dominantes e absorventes, a Literatura Universal. Curvemo-nos respeitosamente perante a grandeza de ambos. Eles merecem. Mais: eles exigem essa veneração quase idólatra. Note-se que eu disse quase. A idolatria plena é sempre nefasta e deletéria. Tanto na religião como na arte.
João Manuel Simões é poeta, crítico, ensaísta, cronista e contista. Autor de cerca de 50 livros. Membro da APL, do CLP, do IHGP, do CEP, da UBE, etc.