Revisitando o dicionário de Mansur Guérios (a pedidos)

Confesso que me surpreendeu sobremaneira a receptividade obtida por um artigo que publiquei há poucas semanas, focalizando o Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes, de autoria do professor Mansur Guérios, mestre insigne da filologia e da lexicografia da língua portuguesa. Nesse artigo, eu tinha oportunidade de desentranhar, da referida obra, duas dúzias de nomes excêntricos, esdrúxulos, estapafúrdios, para não dizer hilariantes, e pouco mais de duas centenas de sobrenomes portugueses, dos mais de oitocentos que integram o dicionário, sobrenomes que, trazidos pelos nossos ancestrais ibéricos, ao longo de quase cinco séculos, acabaram por tornar-se brasileiros. Brasileiríssimos.

Mais de duas dezenas de pessoas, entre amigos, parentes e leitores desconhecidos, tiveram oportunidade de se manifestar a respeito. Sobretudo para reivindicar mais uma série dos nomes curiosos que Mansur Guérios coligiu e apresentou na introdução, lúcida e saborosa, enriquecedora e iluminante, do seu excelente dicionário. Mas também fornecendo nominatas extensas de outros sobrenomes lusos que eu teria esquecido de mencionar.

Não esqueci. Simplesmente me limitei a fazer uma seleção daqueles sobrenomes mencionados pelo professor Mansur Guérios, que se me afiguravam os mais usuais, tanto nesta como na outra margem do Atlântico, esse ?mare nostrum? da cultura luso-brasileira, como gostava de afirmar Bento Munhoz da Rocha Neto. Mar que não separa, mas une ? dizia ele ? os dois povos irmãos do mundo lusófono.

Atenderei com prazer os dois tipos de pedidos e sugestões: arrolarei mais uma ?dose? de nomes estrambóticos ou esquipáticos (como diriam Camilo Castelo Branco e Coelho Neto); e acrescentarei todos os sobrenomes lusos que me foram encaminhados por leitores atentos, e que, na sua esmagadora maioria, constam da excelente obra do grande lexicógrafo e especialista da antroponímia. Começo pela nominata adicional de nomes engraçados. Aí vão eles, por ordem alfabética: Anriqueta Dadinho, Colapso Cardíaco da Silva, Catarina Graciosa Rodela, Céu Azul do Céu Poente, Éter Sulfúrico Amazonas Rios, Defensor Daparte, Epílogo Esparadrapo (este é de morte…), João Rei Bispo de Deus, Jesus Rei das Nações Diniz, Maria Passa Cantando, Manoel Arrependido Gomes, Nacional Futuro Provisório da Pátria, Náusea Pereira, Restos Mortais de Catarina e Silva, Vaipormim Beleza, etc.

Dirão ou pensarão com seus botões (que têm o mau hábito de nunca responder) os leitores mais céticos (ou menos crédulos), que esses nomes foram inventados pela imaginação fértil de Mansur Guérios. De forma alguma. O mestre exemplar, profundamente consciencioso, escrupulosamente ético, cristianíssimo, catolicíssimo, era incapaz de tais invencionices bizarras. Ele era suficientemente veraz e fidedigno para que ousemos sequer duvidar do rol de nomes singulares, ou singularíssimos, que arrolou, na introdução do retromencionado dicionário, colhidos em fontes idôneas.

Aliás, esse rol de nomes ridículos e risíveis me faz lembrar uma frase do sempre bem-humorado Pitigrilli. Dizia ele: ?Chamava-se Exuperanzo. Chamar-se Exuperanzo por um, dois, três dias, dá para agüentar. Mas chamar-se Exuperanzo a vida inteira, é de lascar. Por mim, se me chamasse assim, logo que eu tivesse consciência disso, meteria uma bala na cabeça?. Imaginem se Pitigrilli fosse batizado como Colapso Cardíaco ou Éter Sulfúrico…

Continuando, irei equacionar os novos sobrenomes portugueses constantes das nominatas que me foram encaminhadas por diversos leitores. Por uma questão por assim dizer metodológica, farei o que não fiz no artigo anterior: dividirei esses sobrenomes em sete categorias. A saber: os de origem religiosa, cristã, católica; os de proveniência do reino animal; os derivados do reino vegetal; os provenientes do reino mineral, ou de acidentes de natureza; os relativos a características físicas, temperamentais, psicológicas ou sociais; os toponímicos, ou seja, os nomes de cidades, vilas e aldeias portuguesas que se tornaram antroponímicos, ou sobrenomes pessoais; e, por fim, os sobrenomes não enquadrados, salvo melhor juízo, em nenhuma dessas categorias.

Começo pelos sobrenomes de origem religiosa: Aleluia, Anjos, Ascensão, Assis, Assunção (ou Assumpção), Bispo, Boamorte, Bonfim, Carmo, Chagas, Domingos, Domingues, Esperança, Espírito-Santo, Evangelista, Frade, Igreja, Jesus, Lucas, Mateus, Natal, Natividade, Nazaré, Páscoa, Pascoal, Passos, Paz, Prazeres, Quaresma, Rosário, Sacramento, Salvador, Santana, Santiago, Xavier, etc.

Cito em seguida os sobrenomes oriundos do reino animal: Aranha, Barata, Boto, Cabrita, Canário, Castor, Cerveira, Chichorro, Cobra, Corção, Corvo, Grilo, Lobão, Lobato, Lobeira, Mosca, Moscoso, Passarinho, Pato, Pavão, Peixe, Perdigão, Picanço, Pita, Pombo, Sardinha, etc.

Do reino vegetal: Abrunhosa, Amora, Avelar, Bacelar, Carvalhal, Carvalhosa, Castanheira, Cerejeira, Craveiro, Cravo, Figueira, Flores, Freixo, Horta, Laranjeira, Macieira, Madeira, Mangabeira, Mata, Moutinho, Palma, Palmeira, Parreira, Salgueiro, Saramago, Sobral, Sobreiro, Soveral, Trigo, Videira, Vinha(s), etc.

Do reino mineral ou de acidentes da natureza: Baía, Bouças, Boucinhas, Bronze, Ferro, Fraga, Fragoso, Ladeira, Lage, Lago, Lagoa, Lapa, Lousada, Monforte, Montanha, Monte(s), Pedra, Pedreira, Pedrosa, Penedo, Penha, Prata, Rebouças, Rio(s), Terra, Várzea, etc.

Da quinta categoria: Alegre, Amoroso, Arrais, Baleeiro, Barão, Barbeiro, Beleza, Belo, Bicudo, Bizarro, Brando, Bravo, Calvo, Cascudo, Castanho, Conde, Condessa, Corte-Real, Cortês, Cortesão, Crespo, Curto, Duque, Durão, Escudeiro, Feio, Fidalgo, Forte(s), Gago, Galhardo, Garrido, Grande, Granjeiro, Infante, Largura, Louro, Magro, Manso, Medrado, Mestre, Mestrinho, Moderno, Modesto, Moreno, Nobre, Pastor, Patriota, Penteado, Pequeno, Peralta, Perneta, Piloto, Pimpão, Preto, Prudente, Ruivo, Saião, Tinoco, Valente, Vassalo, etc.

Agora, alguns toponímicos: Albergaria, Alcântara, Almada, Alvarenga, Amarante, Aveiro, Azambuja, Azenha, Barreiro, Bragança, Caminha, Cartaxo, Caxias, Cidade, Colares, Feitosa, Fontainha(s), Galveias, Gouveia, Lamego, Lamenha, Leiria, Loures, Mariz, Monção, Montalvão, Mortágua, Montenegro, Neiva, Parede(s), Pederneira(s), Portocarreiro, Póvoa, Requião, Setúbal, Sintra (ou Cintra), Souto, Soutomaior, Valença, Vila, Vilar, Vilarinho, etc.

Para concluir, arrolarei aqueles sobrenomes que não se enquadram, salvo melhor juízo, insisto, em nenhuma das seis categorias retromencionadas. Ei-los: Aleixo, Andrada, Barbalho, Barradas, Batalha, Brás, Bernardes, Boavida, Bulhões, Cadilhe, Caiado, Calheiros, Camões, Campelo, Cancela, Canto, Carrilho, Cartário, Casado, Cirne, Cisneiros, Colaço, Cordovil, Côrtes, Cotrim, Couceiro, Curado, Deusdado, Diniz, Dornas, Dornelas, Eanes, Eça, Eiras, Farinha(s), Ferrão, Fialho, Fiúza, Flexa, Fogaça, Frazão, Froes, Frota, Girão, Godinho, Gomide, Gondim, Guedes, Guerra, Guerreiro, Gurgel, Gusmão, Henriques, Homem, Lamas, Leça (ou Lessa), Leiva, Leme, Lins, Lustosa, Malta, Maravalhas, Moniz (ou Muniz), Mouzinho, Naves, Nóbrega, Ortigão, Padilha, Paes (ou Pais), Paim, Palhares, Paranhos, Parente, Peçanha (ou Pessanha), Pena, Penido, Prestes, Proença, Queiroga, Quental (ou Quintal), Quintela, Rabelo, Rego, Rente, Rolim, Rua(s), Saião, Sanches, Seixas, Serrão, Simas, Sodré, Soeiro, Taques, Taveira, Teigão, Temudo, Travassos, Uchoa, Valeixo, Valverde, Varejão, Vasconcelos, Vasques, Velasco, Vergueiro, Vidal, Vidigal, Viegas, Vilaça, etc.

Evidentemente, ficaram de fora duas ou três centenas de sobrenomes lusitanos (que se tornaram brasílicos), constantes do livro mansurgueriano. Isso me faz lembrar de um antigo colega do Colégio Estadual, que acabou ficando mais de vinte anos na França, na condição de professor universitário. Dizia-me ele, em conversa, há poucos anos, como eram escassos os sobrenomes portugueses, em comparação com os franceses. Estava equivocado o meu excelente amigo. Redondamente equivocado. Ou talvez fosse melhor dizer ? quadradamente…

Uma consideração final necessária: alguns dos sobrenomes arrolados, neste e no anterior artigo, tanto podem ser portugueses como espanhóis, embora sejam preponderantemente lusos. É o caso, entre outros, de Vargas, Silva, Paredes, Garcia, Lima, Santos, Castro, Pacheco, Bizarro, etc. Mas atenção: regidos pela preposição de, são sempre lusitanos. É o caso destes: (de) Lima, (da) Silva, (dos) Santos, etc.

Esclareço por fim que o dicionário de Mansur Guérios contém ainda nominatas substanciais de sobrenomes italianos, espanhóis e alemães, e, em menor número, árabes, poloneses, ucranianos, escandinavos e russos. Enfim, trata-se de uma importante obra esgotada, cuja reedição se impõe. Mais uma vez deixo aqui consignada a minha sugestão à Secretaria da Cultura do Paraná para que isso aconteça. De preferência no próximo ano, centenário do grande mestre paranaense, de quem tive a honra e o privilégio de ser aluno (de português), na segunda metade da década de cinqüenta. Recordo com saudade a forma como me cumprimentava (a mim e a outros ex-alunos seus), nas décadas de setenta e oitenta. Era um cumprimento típico, jovial, saborosamente quinhentista: ?Como está Vossa Mercê?? Bons tempos. Tempos que dá vontade de lembrar com a clássica frase latina ? ?in ilo tempore…?

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