Revisitando o admirável (mas amargo) Ambrose Bierce

Confesso que me surpreendeu a repercussão de um despretensioso artigo (ou crônica) que publiquei aqui, recentemente, sob o título de Ambrose Bierce e o Dicionário do diabo.

Diversos amigos, parentes e confrades se manifestaram encantados, não tanto com a qualidade da prosa manuelina (evidentemente…), mas com a excelência dos verbetes extraídos do famoso livro bierciano The devil?s dictionary. Mais: chegaram a solicitar-me uma nova dose dos pensamentos e aforismos ambrosianos que, apesar do seu caráter sarcástico e pessimista, agradaram sobremaneira.

Ponderei que era impossível atendê-los, pois os verbetes consignados na minha crônica haviam sido coligidos ao longo dos anos, já que eu não possuía o livro em apreço. Nem o original inglês, nem uma eventual tradução em português, cuja existência ignorava.

Agora, um leitor amigo, o engenheiro Evisálio Gevaerd, gentilmente coloca à minha disposição a tradução do famoso dicionário. Assim sendo, eu tenho agora a possibilidade de oferecer aos meus prezados leitores mais uma ?dose? dos saborosos (e muitas vezes cáusticos) pensamentos ambrosianos, estrategicamente distribuídos por verbetes expressivos, por ordem alfabética.

Aí vai, pois, mais uma série dos aforismos, epigramas e máximas que notabilizaram o cético e cínico norte-americano, cuja pena ferina assustava, no seu tempo, gregos e troianos ? e ianques …

Abdicação: Ato pelo qual um soberano manifesta a sensibilidade das suas nádegas à alta temperatura do assento do trono.

Admiração: Ato de nos dignarmos reconhecer que alguém se parece conosco.

Aliança: Em política internacional, a união de dois estados ladrões, que têm as mãos enfiadas tão fundo, um no bolso do outro, que não podem saquear separadamente um terceiro.

Armadura: Espécie de vestimenta usada por soldados na Idade Média, que tinham como alfaiate um ferreiro.

Batalha: Método de desatar, com os dentes, um nó político que não pode ser desatado com a língua.

Benfeitor: Indivíduo que costuma fazer largas aquisições de ingratidão.

Capital: Sede do desgoverno.

Clarineta: Instrumento de tortura utilizado por um cidadão com algodão nos ouvidos. Há dois instrumentos piores: duas clarinetas.

Cleptomaníaco: Ladrão rico.

Costas: Parte do corpo do teu amigo que tens o privilégio de contemplar, na adversidade.

Covarde: Sujeito que, numa situação crítica, pensa com as pernas.

Diagnóstico: Predição médica de doença, de acordo com o pulso e a bolsa do doente.

Dívida: Sucedâneo engenhoso do grilhão e do feitor de escravos.

Litígio Jurídico: Máquina em que você entra como porco e sai como lingüiça.

Mão: Instrumento singular usado na ponta do braço humano e enfiado, geralmente, no bolso alheio.

Marido: Indivíduo que, depois do jantar, cuida da louça.

Ócio: Fazenda-modelo onde o diabo faz experiências com sementes de pecados novos e promove o desenvolvimento de vícios antigos.

Salientar-se: Fazer inimigos.

Segunda-feira: Nos países cristãos, o dia seguinte ao jogo de futebol.

Telefone: Invenção diabólica, graças à qual suprimimos algumas das vantagens de manter à distância pessoas indesejáveis.

Trabalho: Processo interessante através do qual ?A? adquire riqueza para ?B?.

Vidente: Pessoa, em geral mulher, que tem o dom de ver aquilo que é invisível para o seu cliente; a saber, que ele não passa de um imbecil.

 E fico por aqui. Creio ter atendido, a contento, os pedidos que muitos me fizeram. Certamente Ambrose Bierce é um autor que merece toda a atenção e apreço, quer concordemos ou não com a sua visão do mundo, quer discordemos ou não do seu criticismo ácido, corrosivo e muitas vezes demolidor. Vale sempre a pena lê-lo.

 João Manuel Simões é poeta e prosador.

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