Raphael Galvez (1907-1998), filho de imigrantes espanhóis e italianos, nunca se submeteu às leis do mercado de arte. Não vendia suas pinturas e vivia do modesto trabalho de esculpir para jazigos familiares nos cemitérios de São Paulo. Apesar disso, foi reconhecido por seus pares, a ponto de frequentar o histórico grupo Santa Helena, do qual fizeram parte Volpi, Bonadei e Mario Zanini, seu grande amigo, com quem dividiu ateliê. Com a sua morte, toda a obra de Galvez ficou com o colecionador Orandi Momesso, que organizou junto ao curador Rui Moreira Leite uma mostra beneficente aberta nesta quinta-feira, 17, na Galeria Almeida e Dale. São 60 obras na exposição, em cartaz até 16 de setembro.

continua após a publicidade

Livro

continua após a publicidade

A mostra de Raphael Galvez, que reúne 40 telas e 20 desenhos, vem acompanhada do lançamento de um livro dedicado ao artista, publicado pela editora Via Impressa. Ela privilegia justamente o seu lado menos divulgado, o de pintor. Como escultor, ele é relativamente conhecido por suas obras públicas, como a estátua em bronze de Cervantes (1947) instalada atrás da Biblioteca Mário de Andrade ou o São João Batista em pedra da igreja Nossa Senhora do Brasil (1954), dois exemplos de sua fidelidade aos ideais de beleza e harmonia do Renascimento.

continua após a publicidade

Na pintura, Galvez ousou um pouco mais, conciliando gestos expressionistas com traços pós-impressionistas que remetem a Cézanne. Na exposição, que visa a arrecadar recursos para doação integral à organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, estão praticamente representados todos os gêneros pintados por Galvez em sua carreira, dos autorretratos e nus dos anos 1920 às naturezas-mortas dos anos 1960, passando pelas paisagens dos anos 1940 e 1950, que retratam bairros periféricos de São Paulo.

Acervo. O colecionador Orandi Momesso, que recebeu dos irmãos de Galvez todo o seu acervo, revela que estuda com um arquiteto a criação de um espaço definitivo para abrigar essa obra, que já mereceu estudos acadêmicos, como o de Mayra Laudanna (transformado em livro, em 1999), e uma grande retrospectiva na Pinacoteca do Estado (em 1999). Só ficarão de fora as 60 obras em exposição. Por uma boa causa, arremata Momesso. “Tenho certeza de que Galvez ficaria contente com a decisão de doar esses trabalhos a uma organização humanitária internacional, pois ele nunca ligou para dinheiro, recusando-se a vender suas pinturas.” E não se trata de uma organização qualquer. A Médico Sem Fronteiras atende anualmente, em média, mais de 8 milhões de pessoas no mundo.

Entre as pinturas expostas na galeria Almeida e Dale, o curador Rui Moreira Leite chama a atenção para as paisagens pintadas ao ar livre nos arredores da cidade, dos anos 1940 em diante, em que a presença humana é quase imperceptível – sempre uma ou duas figuras vistas a distância, engolidas pelo anonimato dos moradores dos bairros distantes. São olarias, pequenas igrejas ou bancos de areia do rio Tietê. As telas quase sempre têm cores terrosas e tonalidades baixas, algumas marcadas pela experimentação na textura, cenas suburbanas que transitam entre o Novecento italiano, o pós-impressionismo e o expressionismo alemão em busca de uma síntese pictórica.

“Galvez está mais para o expressionismo alemão”, analisa Orandi Momesso, também um dos maiores colecionadores das obras de Volpi no Brasil. Ele aponta uma tela com o título Canindé (de 1947) com as características dessa escola germânica que floresceu nos anos 1920 e tanto influenciou os modernistas brasileiros. Nela, de fato, é possível sentir a ressonância do grupo Die Brücke, especialmente das pinturas de Schmidt-Rottluff e Heckel.

Cézanne. Momesso destaca também o papel do pós-impressionista Cézanne como referência pictórica de Galvez, justificando essa observação por meio de pinturas dos anos 1960 (na exposição) em que o pintor brasileiro opta pela sinuosidade como forma de enfatizar o movimento da natureza e reafirmar a unidade original entre impressão e expressão – não se pode desprezar ainda a influência dos ‘macchiaioli’, pintores italianos do século 19 que recorriam a densas manchas de cor para “construir” a paisagem, ou ao lugar do fauvista Vlaminck na pintura do brasileiro.

Franceses

A esse respeito, o curador Rui Moreira Leite lembra que Galvez esteve presente à exposição Cent Cinquante Ans de Peinture Française, em 1940, na Galeria Itá, no centro de São Paulo, em que estavam representados quadros posteriormente incorporados ao acervo do futuro Masp, como Rosa e Azul (1881), de Renoir, além de outras 174 obras de pintores como Cézanne, Degas, Matisse e Seurat. “Ele e seus colegas do Liceu de Artes e Ofícios descobriram a pintura francesa nessa mostra, que teve grande impacto sobre seu ofício de pintor”, diz o curador.

Até então, a atividade maior de Galvez era como escultor, na Marmoraria Maia, onde trabalhou até aposentar-se, em 1976. Ele foi assistente de Nicola Rollo em projetos monumentais que nunca seriam realizados em função do tamanho pantagruélico de seus personagens – exemplo disso foi um monumento aos bandeirantes que teria nada menos que 60 personagens. Rollo pensava grande. Galvez foi mais realista.

RAPHAEL GALVEZ

Galeria Almeida e Dale. Rua Caconde, 152, tel. 3887-7130.

2ª a 6ª, 9h/18h; sáb., 10h/14h.

Visitação gratuita. Até 16/9

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.