O artista argentino Guillermo Kuitca, conhecido por pinturas de mapas sobre colchões, exibidas em mostras internacionais como a Bienal de São Paulo (1989), nunca pretendeu que sua obra fosse uma representação metafórica das fronteiras fortemente demarcadas do mundo globalizado – paradoxo do qual ele tira partido na instalação Le Sacre (A Sagração, 1992), que ocupa o octógono da Pinacoteca do Estado a partir desta quinta-feira, 17. A obra, composta por 54 colchões com mapas de diversas regiões, integra uma pequena, mas excelente, retrospectiva, Filosofia para Princesas, a cargo do curador Giancarlo Hannud. Nela, foram reunidos mais de 50 trabalhos de Kuitca, dos primeiros desenhos, realizados nos anos 1980, às mais recentes pinturas, que revisitam o período heroico do modernismo argentino dos anos 1940 e 1950, com evidentes alusões ao “spazialismo” de Lucio Fontana, entre outros pintores.
Aviso aos visitantes: é inútil buscar um sentido para a série de mapas de Le Sacre. Individualmente, cada uma das pinturas nos pequenos colchões retrata um mapa real, mas eles não se comunicam entre si. É o que Kuitca chama de antigoogle map. “Um mapa serve para orientar as pessoas, mas, para mim, é justamente o contrário”, justifica Kuitca. “Ele sempre representou um maneira de me perder.” No início de uma longa carreira, que começou aos 13 anos, Kuitca, hoje com 53, tinha certa obsessão por números, a exemplo do polonês Roman Opalka (1931-2001), uma maneira de ordenar o mundo hostil e caótico, como mostra um desenho seu, feito aos 19 anos, na primeira sala da retrospectiva. Depois, nos anos 1980, seu interesse pelo teatro – e pelo Tanztheater de Pina Bausch em particular – fez emergir figuras num palco estilizado que desapareciam depois nas plantas arquitetônicas. A sua é uma pintura da ausência humana.
As camas, inicialmente pintadas nos cenários teatrais dos anos 1980, foram incorporadas às instalações dos anos 1990, época em que despontou na Documenta de Kassel (1992). Recentemente, na individual de sua galeria nova-iorquina, a Sperone Westwater, ao lado da cartografia fragmentada de Kuitca dessa época estavam os novos mapas do artista, ainda mais enigmáticos por dispensar nomes e orientação.
Há alguns na retrospectiva. Eles brincam com o espírito iluminista da enciclopédia de Diderot, tentativa utópica de dar sentido ao mundo por meio da compilação do saber humano. Kuitca, artista culto, transita com facilidade pelo universo erudito – suas telas adotam títulos como Kindertotenlieder (em homenagem a Mahler) -, mas o que lhe interessa é perturbar a recepção dessas obras com esses nomes.
O público pode ser bastante hostil. Ao assinar o cenário de uma montagem de O Navio Fantasma no Teatro Colón, em 2003, foi vaiado por colocar em cena um carrossel de bagagem de aeroporto no lugar do navio da ópera de Wagner, que carrega um capitão amaldiçoado pela eternidade. Na retrospectiva, há uma pintura que retrata a esteira de bagagem vazia, signo do deslocamento constante de seres que vagam pelo planeta globalizado sem saber exatamente a razão. Em tempo: uma das esteiras gêmeas da pintura chama-se justamente Trauerspiel (2001), palavra alemã que significa tragédia.
Kuitca não faz comentários políticos ao transferir para a tela a condição moderna, heideggeriana, de não pertencer a lugar nenhum, de ser apenas um nômade num mundo em constante mutação, mas admite que suas obras, por vezes, antecipam a realidade, como o mapa do Afeganistão (1992), pintado antes da invasão americana de 2001. Profeta? Não. Apenas um ótimo pintor que adotou o mundo como pretexto. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.