O poeta grego Konstantinos Kavafis escreveu em 1911 um belo poema chamado ?Ítaca?, no qual anima o leitor a empreender uma viagem a essa mítica ilha que, segundo a Odisséia, foi a pátria de Ulisses e o lugar para onde ele regressou após a Guerra de Tróia. Kavafis nos recomenda uma viagem duradoura e repleta de aventuras, sem pressa e sem medo dos perigos que espreitam o caminho. Ítaca não precisa ser um lugar real, pode significar algo diferente para cada pessoa. Às vezes, simboliza apenas um pretexto para iniciarmos uma jornada, outras vezes pode ser uma inspiração ou a representação daquilo que nos motiva a viver, a buscar ou a criar alguma coisa. Ítaca, em si, não tem recompensas para oferecer ao viajante, a não ser o sabor da própria viagem, que nos irá tornando mais sábios e mais experientes com o tempo: ?Melhor será que dure muitos anos e que chegue, já velho, à pequena ilha, rico de tudo o que ganhou pelo caminho?.
Mais ou menos na mesma época, o poeta Antonio Machado publicava na Espanha os famosos versos de seu poema ?Proverbios y Cantares? (1912), retomando as idéias de Kavafis e divulgando-as com mais ardor: ?Caminante, no hay camino, se hace camino al andar?.
Oitenta e dois anos depois, o jornalista e escritor uruguaio Carlos Liscano escreveria um romance, El Camino a Ítaca (1994), no qual relataria sua própria incansável busca, acrescentando assim um elo a mais ao pensamento daqueles poetas.
Este escritor tem um vasto repertório de publicações (que incluem contos, poesias, romances e diversas obras de teatro), além de uma tremenda história de vida, marcada por injustiças, perdas e exclusões. Em 1972, com apenas 22 anos de idade, foi preso, torturado e forçado a permanecer 13 anos no cárcere por motivos políticos. Sobre esse tema, escreveu: ?La tortura se parece a una enfermedad: no duele a todos por igual y sólo el que la ha padecido sabe qué se siente?.
Em seguida, um exílio na Suécia o manteria afastado da sociedade uruguaia por 11 anos mais. Curiosamente, os porões da ditadura lhe propiciaram um longo processo de maturação e autoconhecimento que acabaria por transformá-lo em escritor: ?Aprender de la vida lleva su tiempo?. Seu livro mais recente, El Furgón de los Locos (2003), descreve essa dramática experiência nos calabouços do exército uruguaio.
Como romancista, ele é capaz de nos contar uma boa história sem lançar mão de muitos acontecimentos, ou seja, consegue esconder mais do que mostrar, edificar um conjunto de máximas reflexões a partir de fatos mínimos. As idéias incisivas que permeiam El Camino a Ítaca são as verdadeiras responsáveis pelo vigor do texto. Ao registrar o inescrupuloso mundo dos imigrantes ilegais que vivem na Europa (os metecos), não deixou pedra sobre pedra. Ninguém escapou à sua feroz investida: disparou contra os povos de todas as partes (polacos, finlandeses, suecos, espanhóis, turcos, africanos, asiáticos, chilenos, australianos, ianques, árabes). Criticou os estrangeiros sem pátria, que, ao serem explorados pelos nativos, acabam por se transformar eles mesmos em exploradores implacáveis de outros metecos, pois ?siempre encuentran a alguien más abajo a quien aplicarle el sistema?.
Constatou, enfim, que a Europa não é a acolhedora terra dos sonhos imaginada pelos imigrantes, pois ?los europeos siempre están en guerra. Cuando no están matándose entre ellos andan por ahí, matando a los negros del mundo. El europeo cuando no mata es porque se está preparando?. Em confronto com essa dura realidade, o atormentado protagonista (que também anda em busca de sua própria Ítaca) não tem outra opção senão proferir anátemas contra todos que o rodeiam e o oprimem: seus pais, as mulheres, os políticos, os patrões, a polícia, os escravos do trabalho e, sobretudo, contra a força inata de sua malograda existência: ?Después que se nace nada tiene arreglo, uno ya es el que va a ser, mierda o cielo para toda la vida?.
Para Carlos Liscano, regressar a Ítaca é buscar a felicidade, não se resignar a uma rotina, arriscar o tudo ou nada, saltar do trem da vida em movimento. Mas também é sonhar ou enganar-se um pouco, porque ?la felicidad no existe, pero uno puede inventársela?.
Delson Biondo é professor e escritor.