A ideia brotou no final do ano passado, quando o diretor Roberto Alvim observava os debates entre os políticos que disputavam a eleição presidencial. “A forma como aqueles políticos manobravam as palavras me fizeram pensar na retórica emocional de Brutus e Marco Antônio, da peça Julio César, de Shakespeare”, disse o encenador. “Como a política envolve uma manipulação de afetos – e hoje constatamos essa polarização que invade as redes sociais entre os favoráveis e os contrários, percebi que era o momento de montar essa peça.”

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E, ao invés de apostar na íntegra do texto shakespeariano, Alvim preferiu sintetizá-lo para dois atores, que transitam por todos os personagens, permitindo que o jogo político se evidencie na permanente troca de discurso. Nasceu, assim, Caesar – Como Construir um Império, que estreia na sexta-feira, 17, no teatro do Sesc Santo André – a montagem virá para São Paulo no dia 18 de setembro, no Centro Cultural São Paulo.

“A peça desvela o mecanismo através do qual as falas redesenham os fatos, e estes desenhos mudam de acordo com as circunstâncias”, conta. “Pensando em nosso momento, basta comparar as promessas de Dilma Rousseff antes da reeleição e o que foi obrigada a fazer depois de iniciado o novo mandato.”

Em cena, Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia se revezam entre todos os personagens, mas especificamente nos quatro centrais, justamente os mais ambíguos e contraditórios: César, Brutus, Cássio e Marco Antônio. A diferenciação entre eles acontece por meio de composições vocais e corporais específicas. “Nas palavras e ações desses personagens, percebemos os indícios sutis de uma imensa riqueza psíquica e emocional, repleta de instabilidades, compondo figuras humanas de imensurável complexidade. Mas o grande protagonista da obra não são suas personagens, e sim o processo histórico, que nos mergulha em uma vertigem incontrolável”, explica Alvim.

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A presença de apenas dois atores reforça o argumento de que os discursos são cambiáveis, dependendo da situação. E a trama armada por Shakespeare comprova essa tese – durante uma sessão no senado, César é morto por um grupo de conspiradores liderados por Brutus que, diante do povo romano, profere um discurso para justificar o homicídio, garantindo que a ambição iria conduzir o governante para a tirania. Matá-lo, portanto, foi a melhor maneira de manter o povo livre e salvar a democracia.

Convencido, o povo aclama Brutus como herói nacional. Em seguida, Marco Antônio fala aos cidadãos e, em seu emocionado discurso, garante que César jamais se tornaria um tirano, e que Brutus e os outros não passavam de traidores. O povo avança contra Brutus e seu grupo, obrigando-os a fugir. Em seguida, Marco Antônio assume o poder do Império, enquanto os conspiradores são perseguidos e mortos. Brutus, tomado por uma crise de consciência, comete suicídio no momento em que Roma mergulha em uma guerra civil.

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“O processo histórico revela-se maior que os personagens”, comenta Caco Ciocler. “A peça fala da ação dos indivíduos na história e mostra como vivemos em um rio caudaloso: aqueles que não se adaptam à correnteza, também não sobrevivem.” Já Carmo Dalla Vecchia ressaltou a importância de a peça contar com música executada ao vivo. “As notas ajudam a me manter atento às circunstâncias da trama.”

De fato, ao preparar a tradução e a adaptação do texto de Shakespeare, Roberto Alvim percebeu que era o momento certo para iniciar uma parceria com o filósofo Vladimir Safatle. “Ele assistiu às minhas montagens de Tríptico Samuel Beckett e Terra de Ninguém, além da ópera Artemis e me enviou um e-mail com considerações muito pertinentes”, conta o encenador.

Os dois começaram a se corresponder por e-mail, até que o filósofo enviou ao diretor algumas de suas composições para piano. “Fiquei fascinado. Não sabia que o Safatle compunha e achei sua música estranhamente bela, vigorosa e inventiva. Combinamos de trabalhar juntos no futuro, unindo suas composições ao meu trabalho de encenação”, relata Alvim que, enquanto preparava Caesar, convidou Safatle para compor.

A música de Safatle não entra simplesmente como uma trilha sonora. Segundo Alvim, ela está presente de modo estrutural na encenação, transformando o espetáculo em uma ópera minimalista. “Safatle criou uma espécie de sismografia pulsante do poder”, completa o diretor.

“Procurei criar um trabalho musical do que representa o processo histórico”, observa Safatle, que executa suas canções ao vivo, junto dos atores, pontuando o espetáculo. “Todas as diferentes modulações rítmicas da fala e seus deslocamentos entre texturas vocais são acompanhados por construções musicais, localizando a obra em uma zona que não é a da fala cotidiana, tampouco a do canto: um campo no qual a fala musicada confere outras possibilidades de potência à palavra”, afirma Alvim, que criou também um espaço propício para a encenação.

A peça acontece em um quadrado de 36 m² coberto por milhares de moedas. No teto, surgem esqueletos pendurados e uma luz vermelha de néon de cinco metros de altura une o solo ao teto. “Um império se constrói com dinheiro e morte e é o sangue que os conecta”, justifica Alvim. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.