A pedido do meu amigo Demócrito Aristóteles (oh, a fascinação dos filósofos gregos!), alinhavo em seguida alguns dados breves sobre a vida de um cidadão chamado Sócrates Platão Cançado (assim mesmo, com “c” de cedilha). Morreu, há duas semanas, numa cidade do interior, onde se auto-exilara, não por motivos políticos, mas fugindo dos credores. Morreu de enfarte, coitado. Misericordiosamente fulminante. Como diziam os antigos, morreu como um passarinho. Embora fosse, lamento dizê-lo, um “passarão” notório. Este meu relato, talvez insosso e desenxabido, explicará por quê.
Não irei fazer um necrológio. Longe disso. Vou limitar-me apenas a dar, em algumas pinceladas, o quadro de uma vida que me parece interessante. O pai do extinto, da tradicional família dos Cançados, da cidade gaúcha de Alegrete – “tchê!” – era um homem triste que se alegrava lendo os helenos clássicos. Daí o nome do “rebento”. Mas não só. A irmã, única por sinal, chamava-se também, helenisticamente, Atenas Afrodite. Morreu menina, na flor da idade, coitadinha.
Se bem me lembro – e eu confesso que às vezes lembro mal – conheci o Soplá, alcunha ou apelido por que era conhecido, numa cidadezinha do Sul da Argentina, chamada Puerto Deseado. Isso na década de cinqüenta. ele, então no auge da juventude, 22 ou 25 anos, era já um emérito caçador de focas da Patagônia. Mas não se limitava às focas – e fofocas: de vez em quando, sempre que se oferecia à ocasião, sob o influxo talvez de um conhaquezinho de Mendoza, ele dava uma cacetada – quase sempre mortal – num outro pingüim peripatético, desgarrado do bando alvinegro.
A essa altura, o leitor há de estar se perguntando o que este seu criado travestido de “biógrafo”, Asdrúbal Boavida, estava fazendo, naquela época, em terras de “nuestros hermanos del sur”. Respondo. Ia exercitar lá o esporte que até hoje é o meu favorito: o esqui. Seja no gelo, aquático ou mesmo subaquático. Ou melhor, submarino. Modalidade, esta, que eu próprio inventei – e patenteei a invenção. Mas ninguém sabe usá-la.
Foi em Puerto Deseado que eu iniciei uma amizade superficial com o bom Soplá, que acabou não prosperando. O que vou contando – e o que mais contarei – soube-o, não só através dele, nas últimas décadas, em esporádicos encontros, mas também através de amigos comuns. Alguns, aliás, incomuns, admito sem relutância. Mas tive uma fonte adicional: as colunas policiais de alguns matutinos da paróquia.
Durante muitos anos, em manhãs de cristal e tardes de veludo (sem esquecer as noites da “Boca”), e sua residência privativa foi uma espécie de quadrilátero cujos vértices eram praças da capital sorridente: Osório, Tiradentes, Santos Andrade e Carlos Gomes.
Era um tipo estranho, singular. Muitas vezes perguntei a meus botões (que nunca respondem) se o Soplá não seria um personagem saído de um conto inédito do Dalton Trevisan, ou emigrado de uma crônica marciana de Ray Bradbury. Mas não, não era um ser fictício, mas real. Bem real: certo e oitenta centímetros de altura e cerca de cem quilos de peso. Mais: com carteira de identidade, CPF, assinatura em cartório e, naturalmente, ficha policial. Neste caso, por uma razão singela: algumas vezes, a sua assinatura em documentos não coincidia com a que estava no tabelião. Isso o levou à barra dos tribunais. E, uma vez apenas, passou algumas noites numa penitenciária de segurança mínima.
Mesmo sem ele ter sido um simulacro do César Birotteau balzaquiano, acompanhei de perto – e de longe – a odisséia das suas “grandezas” e a ilíada da sua decadência.
Da sua vida comercial, lembro apenas um episódio. Como dono de bar, foi à falência. Por uma razão simples: era ele o principal consumidor de umas e outras.
A história das suas aventuras no território minado da vida empresarial daria um romance quilométrico com a “Comédia Humana”. Sei, de boa fonte, que ele chegou a pensar em escrever as suas memórias. Mas esqueceu. Tinha memória fraca.
No balanço da sua contabilidade emocional no mundo da iniciativa privada (quase sempre malcheirosa, a imaginação era sempre superavitária. Já o bom senso apresentava um “déficit” crônico. Ou seria anacrônico? Outra coisa: era um predestinado. Casou-se nada menos de cinco vezes. E, curiosamente, em todas aconteceu um fenômeno que, se repetido pela sexta vez, certamente o levaria para o Livro Guinness de recordes.
Qual o fenômeno, mesmo? Explico. Durante a lua-de-mel, ou mesmo na viagem de núpcias, a consorte acabava apaixonando-se por alguém, e fugia com ele para lugar incerto e não sabido. Da quinta vez, o sedutor (ou seduzido, segundo alguns), foi o porteiro do hotel onde passava a lua-de-mel, na suíte ministerial (não havia presidencial). Era um tipo bem apessoado, bonitão mesmo. Com a sua farda imponente, cheia de dourados em fundo azul escuro, adquiria a pinta de um almirante ancorado em terra firme. Além disso, tinha um clássico olhar de ressaca, algo sonhador. E eu não me refiro aos olhos da Capitu machadiana. Penso em três artistas: Robert Mitchum, Victor Mature e Marlon Brando. Lembram-se deles? Eu lembro.
Cansou-se de casar, por fim. Na sexta vez, amigou-se. Com uma viúva de meia idade. Recauchutada, segundo as más línguas. Era uma viúva straussianamente alegre, mas de posses. Herdara, do comendador falecido, vítima de indigestão após uma feijoada pantagruélica, “regada” com duas garrafas de “chianti rosso”. Ele era um plebeu enriquecido, na qualidade de bacharel em secos e molhados, com alma de aristocrata decadente. Essa a definição dada pela própria viúva ao novo consorte – aliás, com muita sorte, no caso.
Ela chamava-se Cynthiah (assim mesmo, com “y” e dois “h”). Um belíssimo nome, sem dúvida. Contra todas as expectativas, em vista do retrospecto, o “consórcio” acabou dando certo. Durante bíblicos sete anos, o casal foi muito feliz. Aí, vítima da grande foice implacável, a Cynthiah foi-se. Sem ironia. Deixou o viúvo inconsolável. Mas com dignidade. Era finalmente viúvo de mulher morta. E morreria doze anos depois.
Recapitulando e concluindo. Uma visão ampla, abrangente, da vida de Sócrates Platão Cançado, revela que ele não chegou a ser um máu-caráter pleno. Nem mesmo um bigorrilhas, ou um cafajeste típico. Mas andou por ali. Tangenciando o círculo. Enfim, foi humano. Demasiado humano, como diria Nietzsche. E diria bem. Seja como for, uma coisa é indiscutível: o bom Cançado descansou. Sem gozação.
João Manuel Simões
é escritor, membro da APL, do CLP e do IHGP, autor de 40 livros (poesia, crítica, crônicas, ensaios, contos e pensamentos.