Repentista Mocinha de Passira fala de machismo e ciúme

Ariano Suassuna a convocou para colocar em si o colar da Academia Brasileira de Letras, no Palácio do Campo das Princesas, no Recife. Não aceitava que fosse outra pessoa. “Mocinha de Passira significa para mim, para o Brasil e para o nosso povo o mesmo que Pastora Pavón representava para García Lorca, para a Espanha e para o povo espanhol”, discursou o escritor, em sua posse, em agosto de 1990.

Mocinha de Passira tem 1,48 m de altura, olha muito a pessoa recém conhecida de rabo de olho e lembra tudo quanto é número de telefone de cabeça. “Tem o telefone de Siba aí, Mocinha?” E ela manda na lata. O cantor, compositor e rabequeiro Sérgio Roberto Veloso de Oliveira, o Siba, ex-Mestre Ambrósio, é doido por Mocinha também. “É a maior repentista do Brasil”, ele costuma dizer.

Mocinha de Passira é, como o nome entrega, de Passira (PE), município formado pelos distritos de Bengalas e pelos povoados de Pedra Tapada, Poço do Pau, Vertente Seca e Candiais. Mocinha, ela explica, foi apelido que sobrou. “Tinha duas Marias em casa. A minha irmã mais velha já era Maria, então meu irmão começou a me chamar de Mocinha, para diferenciar.”

Mocinha de Passira, ou Maria Alexandrina da Silva, fugiu de casa aos 13 anos para se tornar uma das primeiras (e únicas) mulheres repentistas brasileiras. Aos 17, já cantava e criava fama nas feiras do Nordeste. Lembra-se de ter dançado forró num baile em Vitória de Santo Antão (PE), onde o sanfoneiro era ninguém menos que Luiz Gonzaga: “Quem nunca gostou de Gonzaga ou é doido ou é maluco”.

“Danço forró de tudo quanto é jeito. Danço ciranda, coco de umbigada, qualquer coisa. E, quando o cabra tá dançando errado, derrubo ele como se derruba boi na vaquejada. É assim: quando ele tá com o pé de apoio aqui e o outro pé no ar, você levanta o bicho”, diz, e mostra como se faz.

Após 35 anos de repente, como contabiliza, e 65 de idade, ela se gaba: “Nunca vendi um confeito, uma pipoca; meu sustento é isso aqui”. Empunha a viola, e em um segundo sai um repente que fala da queda do avião de Eduardo Campos, seu conterrâneo. Empunha a viola de novo, e sai uma toada alagoana. “Ela e eu ajudamos a resgatar a toada alagoana, porque estava em desuso. Tinha sido deixada para trás tem muitos anos”, explica Sebastião Marinho, presidente da União dos Cordelistas e Repentistas do Nordeste (Ucran) e anfitrião de Mocinha.

Mocinha vive em Pernambuco. Tem um sítio em Passira e uma casa em Feira Nova. Passou por São Paulo na semana passada e saiu para encontrar os amigos (e gravar mais um disco; o primeiro foi gravado em 1976; Mocinha nunca interrompeu sua carreira discográfica, tem diversos registros pela UMES). Na casa do pesquisador Assis Ângelo, no sarau organizado para receber os amigos, ela deu de cara com duas garrafas de uísque. “Bebemos elas todas”, diverte-se. “Eu a chamo de Rainha do Repente, mesmo porque não há outra”, diz Ângelo.

“O repente é um campo muito machista. Era ainda mais fechado quando entrei, fui derrubando barreiras”, conta Mocinha, que não tem a modéstia entre suas maiores qualidades. Segundo conta, enfrentou muita situação vexatória por conta de ser uma mulher numa atividade completamente dominada por homens. Mas a maioria das saias justas vinha justamente das mulheres dos repentistas, que desconfiavam do seu trânsito pela noite acompanhada dos seus maridos. “Tem muito machista imbecil nesse meio. Mas os maridos delas são quase todos velhos, e eu lá sou mulher de ficar de chamego com homem velho? Eu quero é coisa nova!”, ela dispara.

Quem ensinou Mocinha a versejar? “A natureza divina. Mas segui duas cantorias, no começo”. E quem foram essas cantorias? Quando tinha 11 anos, ouviu Raul Ferreira e Zé Ananias. Depois, vieram Severino Moreira e Severino Camocim. E ela ainda menciona uma terceira: João Soares e Manoel Nogueira. “Deles, aprendi as lindas estrofes, a metrificação”, lembra.

Seus repentes e seu estilo são personalíssimos, de uma beleza incomparável, tipo uma flor de mandacaru, como diria Gonzagão. Tem um toque de aboio na voz, mas também um outro componente mais antigo, pastoral, como uma Memphis Minnie do sertão. Afora os discos e um ou outro vídeo, não há outra documentação de seus improvisos. “Tá louco? Repente não se escreve. Aí já é cordel”, ela brinca, com a alusão a cadernos de anotações.

Sua agenda é concorridíssima. Todo ano participa do Festival Nacional de Repentistas Violeiros do Piauí. “Ali, toda noite tinha de ter um desafio para Mocinha”, conta. Também acompanhou o afamado bonequeiro Waldeck de Garanhuns. Em 1994, a MTV Brasil escalou Mocinha e Oliveira de Panelas para duelarem com rappers, o primeiro desafio rap X repente.

Mocinha vem a São Paulo desde 1977, e já participou de júri de festival no Memorial da América Latina, mas é pouquíssimo conhecida fora dos círculos dos folcloristas e experts em cultura popular, o que é um assombro. É uma show woman extraordinária, raciocínio rapidíssimo. Nunca cantou no exterior. “Fui à Bolívia, mas fui para conhecer, em Santa Cruz de La Sierra, o lugar onde o nosso seresteiro, Altemar Dutra, tombou”, ela diz. Não se considera violeira. “Faço o básico da viola para o repente.”

Tem menina nova no repente? “Não tem mais, não. Já teve. As últimas foram Zeza Barbosa, as Irmãs Maurício e Luzivan”, conta. Ela mesma e a paraibana Minervina Ferreira são algumas das mais longevas. A própria Mocinha já dá como favas contadas que seu declínio deve começar por volta dos 70 anos.

“Depois dos 70, tudo vai se complicando, já fica difícil de andar por aí.”

Minervina Ferreira, ela conta, se aposentou há dois anos como professora. As duas gravaram um CD pelo selo CPC-Umes, Mulheres no Repente, que registrava variedades raras do gênero, caso da toada gemedeira, oitavão rebatido, mourão você cai, quadrão mineiro, toada de vaqueiro e outros.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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