Regime militar, um País sem povo

O que resta, hoje, do passado? Tal questão faz parte da consciência crítica nacional, "pois a história brasileira é permeada por golpes que ocorreram desde o Império, quando foram usurpados os direitos da 1.ª Assembléia Nacional Constituinte e Dom Pedro I impingiu a Constituição Outorgada, passando pelo Estado Novo até desaguar em 1964. Passa-se, assim, da imposição do Poder Moderador, um mecanismo institucional contra a Federação nascente, para a ditatorial política de integração e centralização da nação sob o getulismo, até chegar na militar defesa da doutrina de segurança nacional". (Miguel Chaia)

31 de março de 1964. Os militares chocaram o Brasil com um golpe certeiro. Converteram o País em 21 anos de repressão, de desequilíbrio nas rendas (os ricos enriqueceram mais e os pobres ficaram mais carentes), de tortura e de descaso com os trabalhadores.

Antecedentes

É oportuno retomar alguns pontos que originaram o golpe militar para contextualização do tema. Os ministros militares propagaram que o presidente João Goulart (1961-1964), o Jango, era um agitador e interessado em implantar o comunismo no Brasil (o que foi uma enorme mentira). Ora, Goulart era riquíssimo, tinha propriedades no Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Logo, como conciliar o comunista e o latifundiário?

As reformas de base (tributária, administrativa, agrária e financeira) lançadas por Goulart em 1963 mexeram com as elites, com as Forças Armadas e com a classe média? Se as reformas fossem concretizadas ocorreria a maior revolução na distribuição das rendas do País. Segundo Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, aos 13 de março de 1964, em comício próximo à estação ferroviária Central do Brasil no Rio de Janeiro, Goulart discursou para aproximadamente 150 mil pessoas, radicalizando sua promessa de reforma agrária. "Antecipou, também, a futura ?reforma urbana? (que assustou os proprietários de imóveis residenciais nas cidades), além de prometer mudar os impostos, taxando os mais ricos". Assim o processo de conspiração acelerou com o objetivo de lhe retirar do poder.

Portanto, o golpe dos militares foi contra a maioria da população, o que ficou evidente durante o período em que eles estiveram no poder. Mas também não se pode afirmar que Goulart estava interessado na resolução das mazelas do País. Nunca saberemos se ele tinha realmente o ideal da transformação social ou se era um estrategista para continuar no poder.

Regime

A respeito desses anos de sofrimento, a revista Cult, edição 78, março/2004, realizou trabalho jornalístico e histórico que, sem dúvida, serve de referência para professores, estudantes e interessados no entendimento das contradições atuais oriundas da prepotência dos militares. Vejamos.

Boris Fausto, que vivenciou aquele momento, comenta que não percebia qual seria o alcance da interrupção de um sistema democrático: "Eles vão fazer uma limpeza, purificar a democracia e nós vamos logo retomar um quadro constitucional. Ou vai haver uma ditadura que vai se aprofundar? Essa era a dúvida que havia em 64 e 65. Essa dúvida ficou inteiramente resolvida em 1968; com o AI-5 ficou claro que tinha se instalado um regime militar autoritário e que tinha vindo para ficar e por muito tempo?.

Lembramos que antes do AI 5-Ato Institucional n.º 5 ocorreram obviamente outros quatro: o AI-1 (1964), outorgado pela Junta Militar, determinava a realização de eleições indiretas para presidente da República em dois dias após a sua publicação e das eleições diretas em outubro de 1965. Era o robustecimento do poder do presidente que podia indicar emendas constitucionais ao Congresso e ratificá-las por maioria simples. Determinava a suspensão de direitos políticos por 10 anos de qualquer pessoa. Decretava estado de sítio (privação por algum tempo de alguns direitos e garantias individuais) independentemente se havia autorização ou não do Congresso, além de privar os funcionários públicos por algum tempo da estabilidade; o AI-2 (1965) fortificava ainda mais o poder executivo. O presidente podia decretar a suspensão do Congresso Nacional, das assembléias estaduais e das câmaras de vereadores. Passaram a existir somente dois partidos políticos (Arena-Aliança Renovadora Nacional que representava o governo e o MDB-Movimento Democrático Brasileiro que foi oposição). O presidente da República passou a ser eleito pelo Congresso Nacional, ou seja, as eleições passaram a ser indiretas; o AI-3 (1966) determinava que também os governadores de Estado, prefeitos de municípios entendidos como de segurança nacional e os prefeitos das capitais de Estados seriam eleitos por eleições indiretas. Houve inúmeras cassações de parlamentares, e o Congresso foi fechado; o AI-4 (1967) determinava a reabertura do Congresso cujo interesse era a aprovação de uma nova constituição que por sua vez teve breve existência; e finalmente o AI-5 (1968) que amordaçava de vez qualquer possibilidade da existência da liberdade, determinava a interrupção de direitos políticos e as garantias constitucionais inerentes à pessoa, impedida de usar o habeas corpus. O presidente da República podia fechar o legislativo (Câmara de Deputados e o Senado) e legislar em seu lugar quando do seu recesso, além de decretar estado de sítio independentemente da vontade do Congresso e de poder intervir em municípios e estados. O AI-5, que durou onze anos, aprofundou a ditadura.

A respeito do período ditatorial, Silviano Santiago menciona que a literatura foi desprezada. "No momento em que os meios de comunicação de massa foram proibidos de informar a sociedade sobre o que realmente estava acontecendo, o texto não precisava ser literário, bastava que veiculasse a informação justa e necessária". Oswaldo Martins comenta que a maior parte da imprensa apoiou os militares, "com exceção da Última Hora, de Samuel Wainer, afilhado de Vargas, toda a grande imprensa apoiou o golpe. Os canhões de Assis Chateaubriand e de Júlio Mesquita Filho foram muito mais eficientes que os blindados do I Exército. Os repórteres de rádio Tico-Tico e Carlos Spera, das emissoras Associadas (de Chatô), ficaram 48 horas no ar, sustentando brilhantemente a logística do golpe, o que permitia o general combinar com general, ao vivo, cada passo da operação. Foi um passeio".

Vladimir Pomar explicita a preferência dos militares pelos abastados. O Brasil aumentou sua dependência dos capitais e das tecnologias internacionais. "Seu desenvolvimento ficou atrelado aos recursos externos, que financiaram as importações de consumo das classes de rendas alta e média, em vez de ampliar o parque substitutivo das importações e produtor de tecnologias e máquinas. A renda dos mais ricos cresceu para 65% do total do país, enquanto as dos mais pobres caiu para 12%. (…) Assim, em lugar de preparar o Brasil para o futuro, a economia do período militar o deixou fragilizado para enfrentar os desafios da nova revolução tecnológica e da globalização da economia".

Flávio Aguiar é enfático: "O ideal de todos os próceres do regime de 1964, civis e militares, era o de uma república sem democracia, de um país sem povo e de um estado nacional sem nação".

Marcos Fonseca, que entrevistou dom Paulo Evaristo Arns, afirma que o religioso em momento algum aceitou o regime militar. No tocante a tortura, Arns desabafou: "De fato, a lei dizia que não se torturasse e o próprio primeiro presidente militar (Castello Branco) era contra a tortura. Quando fui falar com o general Golbery, com quem eu me encontrei cinco vezes por causa da tortura, ele sempre dizia que a linha dura formava um grupo dentro do quartel e esse grupo era um grupo fechado. E ele deu um exemplo. Um coronel estava vigiando a tortura no Rio quando chegaram aqueles que deveriam ser interrogados e, portanto, torturados e, normalmente, mortos. De repente, entra o filho dele. O coronel deu um pulo na cadeira e disse: "Esse não!’. Aí, todos os oficiais e outros torturadores que estavam ali disseram: "Se não for ele, vai o senhor’. De maneira que a regra era extrema, era observada em extremo. Isso me foi contado pelo general Golbery, o assistente do Geisel". Sobre o jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura de São Paulo morto, aos 25 de outubro de 1975, quando foi prestar depoimento no DOI-CODI-Departamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército, Arns sem meias palavras esclarece: "Nós sabíamos que ele (Herzog) tinha sido morto pela tortura e abafaram. Avisei o Golbery à noite, antes do dia do enterro, e o Golbery me respondeu: "Isso é uma traição, uma traição contra o governo, porque o governo não foi torturar’. Eu disse: Não é. Foi o governo que torturou".

Jorge Antonio de Queiroz e Silva é historiador, pesquisador, professor. Membro do Instituto Histórico e  Geográfico do Paraná. queirozhistoria@terra.com.br

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