Estou convencido de que, no incessante processo existencial humano, a felicidade e a infelicidade são a cara e a coroa da mesma moeda. Afinal, o que seria o Bem se não existisse o Mal? O que seria o prazer sem a dor, o sofrimento sem alegria, a virtude sem o pecado, a luz sem as trevas?
É nessa perspectiva, não propriamente ambígua, mas ambivalente, dicotômica, que o binômio felicidade/infelicidade acaba por compreender-se, aceitar-se e explicar-se.
Julgo que é chegado o momento adequado para evocar algumas concepções da felicidade formuladas ao longo dos tempos por notáveis expoentes das letras e do pensamento universal. Eles nos ajudarão a compreender melhor a complexa problemática que venho focalizando, dentro dos parâmetros da minha insignificância pensante.
Começo pelo filósofo estóico grego Epicteto. Diz ele: ?Esperas ser feliz quando tiveres obtido tudo o que pedes ou desejas. Enganas-te. Terás sempre as mesmas inquietações, iguais cuidados, idênticos desgostos, semelhantes temores, desejos parecidos. A felicidade não consiste em adquirir e gozar o que se tem, mas sim em não desejar, pois só não desejando nada se é verdadeiramente livre e, portanto, feliz?. Admirável pensamento do filósofo escravo. (Abominável escravidão, instituição perversa com mais de três milênios de existência, e que não poupou nem mesmo famosos filósofos gregos!)
Dou a palavra agora a Jean-Jacques Rousseau. O que escreve o mestre de O contrato social? Isto: ?Sejamos bons primeiramente, para depois sermos felizes. Não desejemos o prêmio antes da vitória, nem o salário antes do trabalho?. Um pragmático por excelência, o excelente Rousseau.
Por sua vez, o grande humanista que foi Erasmo de Roterdam ensina: ?Em cada um se acomodar com a sua sorte, e em não querer mais do que tem, consiste a felicidade?.
Já o grande La Rochefoucault, um dos mestres do aforismo universal, pontifica, neste caso com extrema brevidade e concisão: ?Nunca somos tão felizes nem tão infelizes quanto o julgamos?.
Goethe, o gênio alemão da poesia e do romance, escreve, também conciso e breve: ?Na plena felicidade, cada dia é a vida inteira?. Infelizmente, acrescento eu, é pena que os dias sejam tão curtos e a vida tão breve…
Não poderia faltar aqui o pensamento sempre cintilante do sempre cético e bem-humorado Voltaire: ?O homem que vive em busca da felicidade é como o ébrio que não consegue encontrar à noite a sua casa, depois da carraspana, embora saiba que ela se encontra em algum lugar?.
Com extrema sutileza, afirma Girardin: ?O que falta a muita gente para ser feliz é simplesmente ter sido infeliz?.
Já o bispo Bossuet, o equivalente francês, pela grandeza da sua oratória sacra, do nosso padre Vieira, diz num dos seus sermões: ?Uma das maiores felicidades que um bom cristão pode possuir é a de assistir ou contemplar, sem inveja, a felicidade do próximo?.
Darei em seguida a palavra a alguns nomes do nosso condomínio lingüístico, portugueses e brasileiros. Ao contrário dos anteriores, que necessitam de traduções, às vezes pobres, se não precárias, eles têm a infinita vantagem de ter o seu pensamento expresso com as próprias palavras, ?ipsis litteris?.
Começo pelo retromencionado Antônio Vieira, o gênio dos Sermões. É num deles que diz o seguinte: ?Não consiste a felicidade em viver muito, mas em viver bem, como Deus quer?.
Escreve Eça de Queiroz, o ?pobre homem da Póvoa do Varzim?: ?Ver a felicidade dos bons é o maior tormento e o pior espetáculo para os olhos dos maus…?.
Outro mestre da nossa língua, Machado de Assis, ?com a pena da galhofa mergulhada na tinta da melancolia?, assim se expressa: ?Podemos ser felizes da maneira mais simples: não sendo infelizes?.
Coelho Neto, tantas vezes injustamente subestimado por detratores crônicos, ou anacrônicos, sustenta: ?A felicidade é apenas uma ilusão da distância. As estrelas estão no vazio, mas nós podemos vê-las no céu?. E esse gênio sofrido que se chamou Camilo Castelo Branco, desde cedo órfão da felicidade, num dos seus dias mais negros, escreve: ?A felicidade é aquela água pura e refrescante que, sequiosos, num dia de verão, nós só podemos beber com um copo sem fundo?. Para concluir, dou a palavra final ao poeta santista Vicente de Carvalho. A meu ver, ninguém definiu melhor do que ele o que vem a ser a felicidade. Fez isso num soneto exímio, do qual transcrevo os tercetos finais:
Essa felicidade que supomos
árvore milagrosa que sonhamos
toda arreada de dourados pomos,
existe, sim, mas nós não a encontramos,
porque está sempre apenas onde a pomos,
e nunca a pomos onde nós estamos.
Não obstante, quem não sonha ficar a vida inteira à sombra dessa árvore, trincando com volúpia os seus frutos dulcíssimos?
Para fechar este meu texto com chave, não de ouro, mas de ouropel ou latão, ouso perpetrar um aforismo de minha lavra. A felicidade, naturalmente relativa, jamais absoluta, consiste em não ter motivos concretos ou razões subjetivas para ser ou sentir-se infeliz. Coisa que só pode acontecer em caráter provisório, passageiro, intermitente. Mas a verdade é que, mesmo nascido do ventre perpetuamente grávido da noite, o sol é sempre sol. Saboreemos, pois, a sua luz, enquanto ele brilha. Logo chegará a noite. E esse ?moto perpetuo?, alternante, irá continuar ?ad infinitum? e ?ad eternam?. Ou, pelo menos, enquanto o homem existir. ?Ad majorem Dei gloriam.?