Reflexões (im)pertinentes sobre a felicidade (1)

D_6_5300706.jpgA busca da felicidade é certamente a mais antiga e a mais nobre das aspirações, e o mais caro dos projetos existenciais do ser humano, na sua perpétua caminhada que vai do berço ao túmulo, neste nosso mundo sublunar, em trânsito no cosmos que o ?fiat? divino fez surgir um dia, ?ex nihilo?.

Mas a verdade é que, ainda que sem exercitar a liturgia verbal de pessimistas crônicos como Voltaire ou Swift, Bierce ou Mencken, a felicidade absoluta talvez seja um sonho irrealizável, uma esperança vã, um ideal impossível, uma utopia inalcançável. Até porque ninguém poderia – ou poderá – sentir-se plena, absolutamente feliz, enxergando tanta infelicidade à sua volta, vendo o sofrimento daquele que o poeta luso Antônio Botto exalta, num soneto admirável:

 Homem, que vens de humanas
                                     [desventuras,
 que te prendes à vida, te enamoras,
 que tudo sabes, mas que tudo ignoras,
 vencido herói de todas as loucuras.
 Que te ajoelhas, pálido, nas horas
 das tuas infinitas amarguras,
 e na ambição das coisas mais impuras,
 és grande simplesmente quando choras.
 Que procuras cumprir, para esquecer,
 e trocando a virtude por pecado,
 ficas brutal se ele não der prazer.
 Arquiteto do sonho e da ilusão,
 ridículo boneco articulado,
 eu sou teu companheiro, teu irmão!

Como, insisto eu, poderá alguém ser ou sentir-se integralmente feliz contemplando a dor, o sofrimento dos seus companheiros e irmãos em humanidade? Isso constituiria o cúmulo do egoísmo, talvez o pecado maior do Homem. Seria o ápice da insensibilidade humana.

Na opinião de muitos, para que a felicidade no mundo fosse alcançada, em toda a plenitude, para que o seu reinado esplêndido se estabelecesse nos latifúndios terrestres, neste ?vale? de lágrimas freqüentes e risos mais raros, bastaria apenas exorcizar os espectros terríveis que fazem no mundo a sua ronda perpétua. Espectros que se chamam Fome, Doença, Miséria, Insegurança, Desemprego, Guerra, Injustiça e Desamor, para não dizer Ódio.

Assim, o edifício soberbo da felicidade – autêntico céu terreal ou Palácio de Versalhes -se ergueria sobre os pilares magníficos da saúde, da paz, do amor, do trabalho, da fraternidade, da segurança, da justiça, do conhecimento e do bem-estar material e espiritual.

Temos delineada nas linhas precedentes uma autêntica Utopia, semelhante à de Morus, mas também às de Platão e Santo Agostinho, Bacon e Rousseau, Proudhon e Marx, e ?tutti quanti?.

Eu me pergunto, porém, se até mesmo o atendimento de todas as carências materiais do ser humano, do cidadão, desse ?bípede implume? platônico ou desse ?bicho da terra tão pequeno? camoniano, levaria de fato à felicidade geral, ampla, irrestrita ? ou ao infinito tédio.

É bom não esquecer que é nos países mais ricos, nas nações mais desenvolvidas, com os mais altos índices de qualidade de vida, que se verifica o maior número de suicídios. Quer isso dizer que lá, apesar de tudo, alguns homens, pelas mais variadas razões, continuam a sentir-se infelizes.

Por outro lado, é necessário lembrar que existem inúmeros pobres, doentes, ignorantes, que apesar da sua humana condição não chegam a sentir-se inteiramente infelizes, e em cujos olhos chegam a brilhar, às vezes, fugidios lampejos de felicidade. Uma coisa é certa: a felicidade absoluta, na ?terre des hommes? saint-exupériana, é um mito. Mais do que isso: é uma impossibilidade quase metafísica. Aliás, volto a insistir na indagação: como poderá alguém sentir dentro de si a chama fulgurante de uma felicidade constante, inalterável, enquanto no seu entorno o câncer maldito do sofrimento humano, em todas as suas formas deletérias, se alastra, medra e viceja?

Outra coisa. Com freqüência ocorre este fenômeno singular, singularíssimo: pessoas que durante anos e anos se julgavam mais ou menos infelizes, de repente, em face de uma calamidade existencial -o desaparecimento de um ente querido, o surgimento de uma doença grave ou incurável, um desastre econômico-financeiro, uma ruptura afetiva, a perda de ?status? social ou, mais prosaicamente, de um bom emprego – acabam por chegar à conclusão do poeta. Qual? A de que, antes, eram felizes e não sabiam…

Pondero, porém, que há momentos na vida em que o homem poderá sentir e usufruir a felicidade – apertando nos braços a mulher amada, carregando um filho no colo, contemplando uma bela paisagem, lendo, ouvindo música, semeando as sementes que irão produzir o pão dos homens, plantando as árvores que serão as florestas vindouras, rezando, criando, construindo, sonhando, colhendo flores, colocando uma pedra nos alicerces da casa modesta ou da catedral grandiosa, produzindo um poema ou um quadro, uma peça musical ou uma escultura, cumprindo o dever, realizando a missão, fazendo o bem, cumprindo os mandamentos, obedecendo á lei, ouvindo a voz da consciência, e em tantos outros atos ou circunstâncias quotidianas. Mas será sempre uma felicidade breve, fugidia, precária, que a qualquer momento poderá ser abalada ou destruída pelas contrariedades, pelas pedras no meio do caminho, drummondianas ou não, pelos percalços e pelas vicissitudes sempre a adejar como urubus, ou pela aparição de um daqueles espectros a que já me referi antes. Quer dizer: a felicidade não é um sol que brilha permanentemente – a qualquer momento pode ser eclipsado ou mesmo extinto. Nem é uma chama acesa ininterrupta: a qualquer instante o vento poderá apagá-la.

(Continua e conclui no próximo domingo.)

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo