A liberdade é una, indivisível, ilimitada. As liberdades, contudo, são múltiplas. Divisíveis. Limitadas. Só como idéia Ä ou como ideal Ä a liberdade é um valor transcendente absoluto. Só uma liberdade, a de pensar, é absolutamente Ä e definitivamente Ä irrestrita. Podemos pensar até o impensável.
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Fundamentalmente, a liberdade é uma “temperatura” intrínseca, inerente a qualquer obra, atividade, ação, reação, conduta ou itinerário do homem. Sendo ela consubstancial ao próprio ser humano, a sua existência pressupõe obstáculos a superar, abismos a transpor, resistências a vencer, forças a neutralizar, situações a transformar. Está, por isso mesmo, irremediavelmente inserida no tempo e entranhada no espaço. Situada, objetiva e subjetivamente, mergulhada no pélago infinito da real, a liberdade sofre condicionamento, enfrenta limitações. É, portanto, relativa. Contingente, ainda que necessária. Pena é que seus inimigos se prevaleçam desse relativismo congênito para colocá-la em camisas de força. Para amordaçá-la. Para manietá-la. Para castrá-la.
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Só o homem livre é senhor do seu destino. Das suas ações. Do seu futuro. Qualquer restrição, ilegal ou ilegítima, ao exercício da liberdade pessoal, transforma o homem Ä e a metamorfose é transparente Ä de sujeito em objeto. De certa maneira, coisifica-o. Desumaniza-o. Subtrai-lhe uma das marcas mais nítidas da condição humana, essa condição tão eloqüentemente dissecada Ä e cantada Ä por André Malraux, inesquecível arauto e apóstolo da liberdade.
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Não há liberdade sem leis. E não há leis, verdadeiramente legítimas, que não tenham sido inspiradas num claro ideal de justiça. Leis justas são, por isso mesmo, o fundamento e a viga mestra da Capela Sistina da liberdade.
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A liberdade jamais poderá ser total, como pretendem alguns néscios e demagogos. Normas jurídicas, leis naturais, mandamentos religiosos, princípios éticos, convenções sociais ou regras consuetudinárias, tudo isso restringe a liberdade. O que se discute é o grau, a origem e a legitimidade das eventuais restrições. Sem freios, justos e legítimos, atendendo ao bem comum, a liberdade nada mais seria do que um cavalo selvagem, correndo à rédea solta. Qual o cavaleiro que se sentiria à vontade, montado no seu dorso?
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Não tenhamos ilusões: a liberdade não é e jamais poderá ser sinônimo de anarquia, libertinagem, permissividade, licenciosidade. Estas são meras contrafações, simples simulacros da verdadeira, pura, autêntica liberdade. Juntamente com a privação dela, constituem a sua antítese cristalina.
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Livre, escreve o padre Sieyés, é aquele que tem a garantia de não ser importunado no exercício da sua propriedade pessoal e no uso da sua propriedade real. Assim, todo o cidadão tem o direito de ir, vir, ficar, falar, silenciar, escrever, imprimir, publicar, trabalhar, produzir, guardar, transportar, trocar, consumir, etc. Os limites da liberdade individual se situam até o ponto em que ela começa a prejudicar a liberdade de alguém. É a lição clássica do imenso Kant: a minha liberdade acaba onde começa a tua. Cabe à lei demarcar esses limites. Fora da lei, fora do que ela expressamente proíbe, tudo para nós é livre. Pois o pacto social não tem por objetivo apenas a liberdade de um ou vários indivíduos, mas de todos. Uma sociedade em que um homem fosse mais ou menos livre do que outro estaria, sem dúvida, muito mal-organizada. Seria preciso reconstrui-la, desde os alicerces.
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A cada porção de liberdade conquistada a duras penas, deverá corresponder, simetricamente, uma parcela de responsabilidade conscientemente assumida.
Com autocontrole. Com autodisciplina.
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Como a virtude, como a justiça, também a liberdade é mediterrânea. E ao considerá-la “a justa medida”, Platão pensava certamente nos riscos tangíveis configurados no seu excesso ou na sua carência, claros desvios de um caminho médio. Em ambos os casos, periga o ideal de harmonia onipresente no pensamento platônico. Sim, a liberdade harmônica seria o espaço, o território em que se movimentam os cidadãos da República sonhada pelo filósofo da Academia. Ideal utópico? Talvez. Mas ideal, antes de mais nada. E não são eles, os ideais, que dão sentido à vida humana?
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O grande problema da liberdade situa-se, a meu ver, numa das suas chamadas “instituições estratégicas”, como é o caso da liberdade política. É ela que gera as grandes discussões e controvérsias, monopolizando as atenções da sociedade. Afinal, nenhuma restrição à liberdade política é admissível caso ela não esteja prevista em lei legitimamente emanada da vontade popular ou por ela endossada, majoritariamente, pelos seus representantes. Fora desses parâmetros teríamos apenas o império liberticida do autoritarismo do Estado, governo, partido, líder ou tirano de plantão. Autoritarismo que só pode ser exorcizado por uma sociedade constituída por homens livres.
João Manuel Simões
é escritor. Membro da Academia Paranaense de Letras.