Redator celestial

Estou atingindo 3.500 metros de altitude. A cidade de São Paulo é uma mancha difusa, esfumaçada, de contornos indefinidos. Vou me afastando na direção de Santos, tentando subir mais um pouco com o velho Stearman PP-LBE. O antigo biplano tem um motor Wright de 450 HP, 9 cilindros, perfeitamente afinado pelo mecânico José Vilarinho. A partida do Stearman era dada por uma manivela, que embalava um volante pesado. Fora da cabina, havia um comando do engrazador. Depois de embalado o volante, o mecânico puxava o comando e a velocidade deste era transferida ao motor, que pegava. O avião não possuía partida elétrica e era extremamente primário. Inclusive, só tinha aileron nas asas inferiores o que, nas alturas em que eu voava, lhe dava um certo mau gênio aerodinâmico, uma preguiça de fazer curvas e uma tendência malandra para cair de asa, em parafuso. Aberto, a cabina vivia com ar turbilhonando, mas o vento que cantava nos estais era música para meus ouvidos, entrando pelo capacete de couro e pelos respiros dos óculos de pilotagem, que evitavam o embaciamento.

Já estou sobre o mar santista, com o máximo de mistura puxada e o Stearman já vai começar a “patinar”, não subindo mais. Afivelada na minha perna esquerda está a prancheta com o diagrama da escrita. O ar aqui em cima é rarefeito e faz muito frio. O avião não tem equipamento de oxigênio e a única maneira de avaliar como estou me sentindo é tirar uma das luvas e olhar a base das unhas. Encolho os pés dos pedais, prendo o manche no meio das pernas e tiro a luva esquerda, para ver se não estão arroxeando pela falta de oxigênio. Um pequeno, quase imperceptível filete roxo está surgindo nas unhas, bem junto à cutícula. Calço a luva e nivelo. Estou na altura máxima que meu corpo pode resistir. Se abusar, entro em euforia e apago, por falta de oxigênio.

Faço um círculo de posicionamento, com o avião se arrastando, pesado. Tenho que “escrever” em cima de Santos para que a fumaça chegue, conduzida pelo vento, a São Paulo.

O posto de pilotagem do Stearman era no assento dianteiro. O traseiro havia sido fechado e tinham colocado ali um tambor de 200 litros de óleo flushing, que gozativamente chamávamos de “Marvell Mistery Oil”. Este óleo era bombeado até a estrela coletora de escapamento do motor e ali injetado, através de tubinhos de cobre, cujas soldas eram a eterna preocupação do Vilarinho. O óleo, entrando no escapamento aquecido, saía em tufos de fumaça densa e pegajosa. Se uma daquelas soldas trincasse ou partisse, permitindo a entrada de ar, agourava o Vilarinho: – Você vai virar um maçarico lá em cima!

A letra maiúscula tinha 1.600 metros de “perna” e a minúscula, 800. O cálculo da extensão era feito por um cronômetro, que eu levava por cima da luva esquerda. Ao lado das manetes de mistura e aceleração, estava a chave que comandava o fluxo do óleo. A escrita-área tinha que ser feita de trás para diante, na horizontal, invertida, para que fosse legível do solo. Cada letra era um movimento completo de curvas e cortes, onde se fazia a interrupção da fumaça, para deixá-la montada. Por exemplo, a letra “C” era um círculo, onde se fechava a bomba de fumaça na metade. Aquela manhã eu ia escrever “DDD”.

Um círculo completo, um interrompido, o corte reto para fechar o “D”, outro círculo interrompido, outro corte reto, cada letra separada por 2.000 metros.

Depois, era só descer lentamente, o que levava às vezes trinta minutos ou mais.

Um dia, fui deslocado para Itapetininga. Era ano político e o contrato previa que se escrevesse pela região o nome do candidato do PSP: Ciro. A escrita, regra geral, só poderia ser feita com céu lavado, sem nuvens. Decolei, ganhei altura, escrevi e, quando ia pousar, vi uma caixa d’água, numa ponta de rua. Baixinho, com o motor do Stearman roncando a pleno, fiz uma coroa de fumaça sobre o reservatório. Ficou parecendo um bolo de noiva, o óleo se depositou na superfície da água e eu acabei ouvindo lamentosas acusações do Aldo Pucci, candidato a Prefeito.

Na volta para São Paulo, passei sobre minha cidadezinha natal Piedade onde meu pai era, também, candidato a prefeito. Com o tanque de óleo carregado, ganhei altura ali em cima, espiralando, e escrevi: TOTÓ.

O velho não perdeu a ensancha. Saiu rápido, apontando para o céu e espalhando: “Olhem lá! Deus mandou votar no Totó!” Mesmo com suposta ajuda divina, perdeu a eleição.

O reboque de faixas era outra atividade à qual eu me dedicava na PABRASA Propaganda Aérea Brasileira S.A. Os letreiros eram montados na velha pista do Butantã, em São Paulo, no sentido contrário ao da decolagem. As letras de tecido tinham 1m e 50 de altura por 1m e 80 de largura, armações de bambu fino, enlaçadas por cadarços largos. Na cabeça do letreiro havia um “cabresto”, feito com bambu grosso e oco, cheio de chumbo. Do “cabresto” partia um cabo de 60 metros, na ponta do qual havia uma laçada que dois irmãos pernambucanos Lucas e José levantavam com bambus longos. Na cauda do Stearman, junto à bequilha, estavam soldados dois desligadores. Um deles prendia o cabo; outro, segurava uma “âncora” de ferro, através da qual o letreiro seria “pescado” e levantado do chão.

Só depois da decolagem é que se soltava o desligador que prendia a âncora. Esta ficava, na ponta de um cabo de quinze metros, balançando alucinadamente no remúo do avião. Esta âncora teria que passar por dentro da laçada, engatar e levantar o letreiro.

Lá venho eu, em longa final, mantendo a reta para que a âncora se alinhe um pouco, vou reduzindo a velocidade do Stearman para o planeio, a manete está quase no batente de marcha-lenta. O avião é pesado e plana mal, mas acontece que a manobra terá que ser feita assim mesmo.

Quando “sinto” que a âncora engata na laçada, colo o manche na barriga e ataco o motor a pleno. Se não for assim, o cabo arrasta e destrói o letreiro ainda na pista. É preciso fazer um arco, puxando o avião para cima.

Depois, o tranco, quando o letreiro se alinha com o avião, a velocidade caindo para 65,70 milhas, o vôo achatado, com o motor urrando no esforço de arrastar aquela massa antiaerodinâmica.

Na pré-estol, a cem metros de altura sobre o vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, entre o paliteiro de prédios, voava tranqüilo um piloto inocente. Lá atrás, panejando, o maior letreiro que já reboquei: “Dia 29 Elvira Pagã no Cine Esmeralda”.

Uma tarde, já regressando à pista, salta a tampa do tanque de óleo do avião. Diante da chuva viscosa e preta, reduzi motor, baixei os óculos lambuzados, e capei o letreiro. Por sorte, aquela massa toda despencou exatinho num terreno baldio do Sumaré, enquanto eu pousei no Butantã, com o avião vibrando e as pernas bambas.

Wilson Silva

é jornalista e escritor (do livro “Além do Arco-Íris Memórias de um Piloto”)

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