Aconteceu no Rio, em 12 de agosto de 1956, quando um Teatro Municipal lotado assistiu a um concerto que tinha como destaque um pianista de 11 anos, fazendo ao lado da Sinfônica Brasileira sua estréia profissional. Cinqüenta anos mais tarde aquela tarde de música perdida em meio à temporada carioca transformou-se em data histórica. Marcou o início da trajetória nos palcos de Nelson Freire.
São Paulo (AE) – Uma trajetória que o colocou entre os maiores nomes de seu instrumento. Sim, há muito a comemorar. E as festas começaram nesta quinta-feira, quando ele interpretou o Concerto n.º 4 de Rachmaninoff com a Osesp, em São Paulo. Em julho, em Campos do Jordão, e agosto, no Rio, repete com a Sinfônica Brasileira o mesmo concerto de Mozart com que iniciou a carreira. E promete, até o fim do ano, fazer o mesmo, ao ar livre, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Nelson Freire explicou o porquê da escolha do Concerto n.º 4 de Rachmaninoff -no início do ano, havia sido anunciado o segundo concerto de Prokofiev. ?Eu queria tocar uma peça que é pouco ouvida. E este concerto sempre me fascinou. É como a ovelha negra entre os concertos de Rachmaninoff, raramente faz sucesso. As pessoas ficam esperando o romantismo dos outros concertos e se decepcionam. Mas este é quase moderno, tem uma influência jazzística, um ritmo muito difícil. Não que falte lirismo. É que a tônica, a preocupação é diferente. A orquestração é muito rica. Enfim, adoro este concerto e acho que merece ser ouvido.??
Sem balanço
Freire evitou fazer balanços, disse que não gosta muito de ficar olhando para trás. Mas se disse animado com a possibilidade de repetir o concerto com que iniciou a carreira, 50 anos atrás. Brincou sobre a ?briga? com o piano da Sala São Paulo, mostrada no documentário de João Moreira Salles. ?Pianos são como pessoas. Acho que a gente já se conhece melhor??, disse. Mais alguma coisa? Tímido e sabidamente avesso a entrevistas, prometeu falar mais quando chegasse a São Paulo. O desembarque foi no início da tarde de terça.
E, enquanto na Alemanha a seleção brasileira ganhava – sem muito brilho, verdade – do time de Gana, Nelson Freire rumava para a Sala São Paulo, para o reencontro com o piano. Mergulhou em música. E cancelou as entrevistas. Sem surpresas. Nelson Freire não gosta muito de falar sobre o que toca. Prefere sentar-se ao piano. É ali que se sente à vontade. ?Minha relação com a música é de amor. É onde eu sou mais eu. Não há nada que não possa ser dito no palco??, costuma explicar.
Música
Por mais que seja tentador sentar-se com ele, conversar sobre os 50 anos que se passaram, sobre o presente, o futuro, a gente entende. Há muito da essência de Nelson Freire no modo como se esquiva de badalações. ?Cansa essa coisa de ninguém saber onde você está, de nunca conseguir falar com você. Você vê, pianistas como Maurizio Pollini ou mesmo Marta Argerich, hoje não fazem mais do que 30 concertos por ano. O artista tem de lutar para não se tornar um mero objeto de consumo. A coisa toda é muito desgastante. Há sempre a necessidade de se planificar tudo. Para que isso? A vida real não é assim.??
A declaração traz embutida uma idéia muito clara da função do músico que ajuda muito a entender o fenômeno Nelson Freire. O intérprete, diz, é apenas um meio, jamais um fim em si próprio. Ele aprendeu isso lá atrás, ainda na infância, quando deixou Boa Esperança, no interior de Minas Gerais, e mudou-se para o Rio. Lá, estudou com d. Lúcia Branco e Nise Obino. ?De d. Lúcia obtive uma educação privilegiada e, de Nise Obino, além da música, aprendi todo o aspecto psicológico e espiritual de que um artista tanto necessita. Foi a base para a compreensão, que veio com o tempo, de que o mais importante é saber se ouvir. Muitos artistas tentam compensar suas interpretações com gestos, mas isso é uma ilusão; o importante é aprender a se ouvir.?
Mas o intérprete é mais do que isso. Freire acabou de lançar um novo disco para a Decca com os dois concertos para piano e orquestra de Brahms. Ao descrever o maestro Riccardo Chailly, que o acompanhou na gravação, disse que ?é um artista que sabe unir a tradição ao novo, sabe exatamente que elementos do passado devem ser pensados e reavaliados na hora de fazer a música do presente?.
Poderia estar falando de si mesmo. Freire fez desta linha tênue que separa a partitura escrita da música que se ouve o seu território. Música, diz, é vida. E, para ele, não há vida sem música. ?Isso é muito contagiante.??
Quem já o ouviu sabe que é verdade. Freire chama os concertos de Brahms de ?velhos amigos??. Mas são daqueles amigos sobre quem a gente sempre descobre uma coisa nova. ?Antes de gravar, tocamos estes concertos diversas vezes. E sempre saía diferente. É assim que é bom. E tocar com a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig é uma experiência única. Fazer música para eles é como uma religião. Não há afetações, narizes empinados.?? O que mais dizer sobre Nelson Freire em seus 50 anos de carreira? Apenas que, se é no palco que ele gosta de conversar com o público, chegou mais uma vez a hora de sentar e ouvir o que ele tem a nos dizer.