No tempo que separa o início de tudo, 1988, da noite de quinta-feira, 10 de outubro de 2019, cabem oito presidentes da República. Sarney, Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer e, com dez meses de mandato, Jair Messias Bolsonaro. Quase 31 anos da entrada em uma ciclo democrático – em que as pessoas elegem seus representantes – exposto em um rito giratório de campanha, posse e entrega que, independentemente de orientações políticas e ideológicas, não conseguiram envelhecer o discurso dos Racionais.
Na primeira noite em que Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay estiveram no palco do Credicard Hall para celebrar os 30 anos de história e gravar um DVD, ninguém mencionou nomes de governantes no palco ou bradou palavras de ordem na plateia contra a atual gestão, ao contrário dos focos verbais em shows de música pop do Rock in Rio. Curioso saber que um dos gêneros mais combativos não promova necessariamente revoltas em suas plateias, o que pode embasar uma equivocada leitura. Ao contrário dos shows de rock, onde o despertar se dá como cotas, em ilhas de lucidez cercadas por euforias adrenalizadas e outras celebrações à vida, o rap dos Racionais mantém o peso por mais de duas horas de um show monotemático. A consciência, assim, não é um arroubo civil momentâneo, mas a própria cultura, sua única possibilidade de existência. Não por acaso, os anos de maior equilíbrio econômico e inserção de pobres na classe C obrigou o rap combativo a submergir para o aparecimento de uma vertente de pista. Sem uma causa legítima, como a que retorna com força neste momento, o rap duro não existe.
As letras dos Racionais, estudadas em teses acadêmicas e usadas, ao menos até 2018, em provas vestibulares de grandes universidades, já diziam tudo. A turnê Racionais Três Décadas sobrevoa os passos do grupo mais importante parido da cultura de periferia urbana no Brasil. O conjunto de sua obra já está em processo de reconhecimento histórico para receber as mesmas reverências narrativas de um Noel Rosa, que levava ao alto da pirâmide intelectual a poesia suburbana do Rio nos anos 30, ou da sociologia empírica de um Luiz Gonzaga, que revelava, a partir dos anos 50, a vida, a gastronomia, as roupas, o sotaque e todo o Brasil que existia do umbigo sulista para cima.
Brown, Gonzaga e Noel cantam lugares que muitos brasileiros só conhecem por suas músicas, mas um porém os diferencia: ao contrário do samba e do baião, o rap brasileiro nasceu, a partir dos Racionais, como o filho rebelde que não troca a revolta pela dança, assumindo tudo de bom e de ruim pela decisão.
A verdade é cortante quando Brown, Edi, KL Jay e Blue voltam aos clássicos desde 1988, ano em que saiu a coletânea Consciência Black nº 1, até 2014, de Cores e Valores. O grupo cresceu, o tempo das rimas se ajustou, a produção deu um salto e, mesmo os possíveis escorregões machistas, como aqueles em que caíram Noel, Gonzaga, Bezerra da Silva, Chico Buarque e todo o cronismo de época brasileiro para retratar personagens de meios igualmente áspero às mulheres, têm sido reavaliados pelos rappers. E muito graças às próprias mulheres periféricas, que passaram a contestar trechos em que poderiam parecer menores do que os homens quando, muitas vezes, são rainhas sem rei. Ainda assim, as músicas antigas estão lá, como “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”, do disco de estreia “Holocausto Urbano”, gravado em 1988 e lançado em 1990, para mostrar quem eles foram e quem eles são. “Homem na Estrada”, “Fim de Semana no Parque”, “Mágico de Oz”, “Diário de um Detento”, “Jesus Chorou”, “Vida Loka” 1 e 2.
“Negro Drama” profetiza noites de plateias amontoadas como a de 2019. Saiu no álbum “Nada Como Um Dia Após o Outro Dia”, de 2002, quando a bomba já havia explodido e os Racionais haviam se tornado um case. Foi por aí que olharam para o público e perceberam tonalidades mais claras de meninos e meninas que cantavam letras bíblicas de cor deixando a lágrima descer. Não eram mais só negros e mestiços dos bairros periféricos, mas brancos de todas as pigmentações e ricos de todos os sobrenomes. “Negro Drama” fala de como, para desespero dos pais que entendiam serem os Racionais porta-vozes de uma criminalidade glorificada, seus filhos passaram a se sentir representados por aquela verdade e a amá-la. Para ser grande, ensinava Brown, não precisava passar fome e, para ser burguês, não precisava ter os olhos claros. O playboy da periferia pede tênis Nike para a mãe doméstica sem jamais lavar uma louça enquanto ela sai para trabalhar. “Negro Drama” diz: “Inacreditável, mas seu filho me imita / No meio de vocês ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto / Esse não é mais seu, oh, subiu / Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu / Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia? / Seu filho quer ser preto, ah, que ironia / Cola o pôster do 2Pac aí, que tal? Que cê diz? / Sente o negro drama, vai tenta ser feliz.” 2Pac é Tupac Shakur, o mais importante rapper norte-americano, vendedor de 75 milhões de discos no mundo, assassinado em 1996 com quatro tiros. Três décadas e oito presidentes depois, o que dizem poderia ter sido escrito ontem. Feliz o povo que não precisa de um Racionais. Triste o povo que não tem um Racionais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.