Quem tem medo, não de Virgínia Woolf, mas do regime democrático?

Dizia o cético e cínico, e não menos brilhante, estilística e conteudisticamente, Nelson Rodrigues, que ?toda unanimidade é burra?. Não obstante, eu sempre imaginei que alguns princípios, valores, ideais ou conceitos seriam objeto de uma aprovação universal unânime ou mesmo uníssona, como um coral de Haendel ou de Beethoven, sobretudo o que canta a ?Ode à alegria?, de Schiller, no final da Nona Sinfonia do gênio. Um desses valores, princípios, ideais ou conceitos seria precisamente o de democracia. E eu penso que o termo faz jus à maiúscula, que nada tem de retórica ou de metafórica.

Sim, eu estava plenamente convicto de que o governo do povo, pelo povo, para o povo, seria um daqueles edifícios conceituais simplesmente inatacáveis, imunes ao vírus deletério da contestação, refratários ao ácido corrosivo da contradita, em suma, aceitos em toda a plenitude, ?urbi et orbi?. Engano ledo e cego o meu, como diria são Luís de Camões, o segundo santo da minha devoção poética. O primeiro? São William Shakespeare. E o terceiro? Confesso que fico em dúvida: são Dante Alighieri ou são Fernando Pessoa? Mas vamos adiante, que se faz tarde.

De fato, são amplamente majoritárias, e bem conhecidas, as opiniões entusiásticas pró-democracia. Mas há vozes discordantes. Algumas, respeitabilíssimas. Comecemos por aquele que o oráculo de Delfos considerou o mais sábio dos gregos. Refiro-me naturalmente a Sócrates. É quase certo que uma das três razões basilares para a sua condenação, pelo Tribunal dos Quinhentos, os Heliastas, a beber o fatídico e letal cálice de cicuta, foi, além das duras acusações de corromper a juventude e não acreditar nos deuses da ?polis?, a sua postura flagrantemente antidemocrática.

Muitos séculos mais tarde, far-se-ia ouvir outra voz inconfundível ? a daquele que Eça considerou o ?divino Flaubert?. O que dizia o mestre de ?Madame Bovary?, ?Educação sentimental? e ?Salammbô?? Isto: ?Tout le rêve de la démocratie est d?élever le proletaire au niveau de la bêtise du bourgeois?. Ou seja, em vernáculo camoniano: ?Todo o sonho da democracia é o de erguer o proletário ao nível da ignorância do burguês?. O que significa isso em última análise? Que a grandeza literária ou estética nem sempre é sinônimo de grandeza ou de inteligência política…

O nosso Eça de Queirós, pela boca do seu Zagalo (não o técnico de futebol, mas o biógrafo do Conde de Abranhos), não deixa por menos: ?Quantas vezes me disse o senhor Conde que era este o segredo das democracias constitucionais. Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo, que é forte e simples; mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade, e o amolecimento da consciência o amolece na indiferença, eu faço-o exercer essa soberania em meu proveito, e no seu proveito, ó compadre!?.

O grande Unamuno, o mestre de ?El sentimiento trágico de la vida?, também não morria de amores por aquela ?planta tenra? a que se referiu Mangabeira. Dizia ele: ?No me gustan mucho las democrácias, pero hoy son ya inevitables?. Penso que, no caso, é desnecessária a tradução.

Deixando de lado a fauna dos tiranos e tiranetes cuja ojeriza ou mesmo ódio à democracia se manifestou em todos os séculos, sobretudo no mais recente, por palavras, atos e omissões (como se diz no ?confiteor? católico), darei a palavra a um figadal inimigo do regime democrático, o notório Clemenceau. Dizia ele, num discurso inflamado: ?La démocratie? Savez vous ce que c?est? Le pouvoir por les poux de manger les lions?. Traduzo: ?Vocês sabem o que é a democracia? O poder dos piolhos comerem os leões?. E a metáfora zoológica dá bem a medida da natureza do animal racional (no caso, o adjetivo é supérfluo) que a produziu.

Não encerrarei este meu texto, porém, sem a necessária, direi mesmo, sem a indispensável defesa da Democracia. Três nomes me bastarão para fazer a sua apologia: Péricles, Lincoln e Churchill.

O grande estadista ateniense, no célebre discurso em homenagem aos gregos mortos na Guerra do Peloponeso, afirmava a certa altura, segundo Tucídides: ?Nossa Constituição é democrática porque interessa à maioria, e não a um pequeno número de indivíduos. Quanto às leis, todos têm os mesmos direitos; quanto às dignidades, cada um, de acordo com os seus méritos, é geralmente preferido para os cargos públicos, não pelo partido a que pertence, mas por suas virtudes morais e suas qualidades profissionais?. Ah, que bom seria se essa colocação emblemática, formulada há quase dois milênios e meio, valesse para a contemporaneidade, em todas as latitudes do planeta…

 Muitos séculos mais tarde, diria Abraham Lincoln: ?As I would not be a slave, so I would not be a master. This express my idea of liberty. Whatever differs from this, to the extent of the difference, is not democracy?. Ou seja: ?Como não gostaria de ser escravo, também não gostaria de ser amo. É essa a minha idéia de liberdade. Tudo o que diferir disso, na medida da diferença, não é democracia?.

?Last but not least?, ouçamos a voz daquele que eu considero um dos quatro maiores estadistas do século vinte, ao lado de Franklin Delano Roosevelt, Konrad Adenauer e John Fitzgerald Kennedy. Refiro-me evidentemente a Winston Churchill. O que dizia o Leão Britânico? ?No one pretends that democracy is perfect and all-wise. Indeed, it has been said that democracy is the worst form of government, except all those other forms that have been tried from time to time?. Ou seja, no vernáculo eciano-machadiano: ?Ninguém pretende que a democracia seja perfeita e sem defeitos. Na verdade, tem-se dito que é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais que foram experimentadas, de tempos em tempos?. Nada a acrescentar. ?Tout est dit?, como diria Montaigne.

 Mas, embora contradizendo-me, eu direi algo mais, do fundo do poço da minha insignificância pensante: para mim, a mais perfeita democracia seria aquela que realizasse na prática o tríplice ideal da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Embora a plena existência desta última tornasse supérfluas as outras duas.

P.S. Penitencio-me por haver feito algumas citações nas línguas originais, com exceção do grego, que não domino. Não o fiz por simples esnobismo ou eventual pedantismo, mas pelo fato de eu constatar que tais citações são com freqüência distorcidas ou mutiladas.

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