Há 11 meses, quando o Santander Cultural cancelou, em Porto Alegre, a Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, a exposição virou alvo de comentários depreciativos de quem jamais a visitara. Nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro, a partir deste sábado, 18, o público poderá finalmente conhecer as obras de artistas canônicos, como Volpi, Guignard, Lygia Clark e Portinari, e também nomes emergentes e marginais.
Pressionada também na cidade – o pastor Silas Malafaia, da Associação Vitória em Cristo, provocou o Ministério Público por acreditar que a “arte queer busca destruir valores judaico-cristãos” -, a mostra, de recorte inédito, será reaberta com o aviso de que seu conteúdo tem “representações de nudez, sexo e simbologia religiosa”, e que se recomenda que menores de 14 anos sejam acompanhados dos pais ou responsáveis. A orientação foi do próprio Ministério Público.
“É uma vitória para a sociedade brasileira, depois da censura e dos ataques à liberdade de expressão. Não se aceita o crescimento do fundamentalismo no País”, comemora o curador, Gaudêncio Fidelis, que, ao defender a mostra de acusações de “apologia à pedofilia e zoofilia” e “vilipêndio de signos religiosos” (todas refutadas pelo MP gaúcho), chegou a receber ameaças de morte. “Foi gravíssimo o que aconteceu. Não fosse sua força artística, a Queermuseu não teria ganhado essa dimensão. Abriu-se um debate profundo sobre gênero e sexualidade numa escala que ainda não se tinha visto.”
Trata-se da primeira exposição autointitulada queer da América Latina, viabilizada graças ao sucesso de uma campanha de financiamento coletivo – virou uma das mais rentáveis vaquinhas virtuais do País, com mais de R$ 1 milhão arrecadado -, e de um leilão com doação de artistas e show de Caetano Veloso.
A mostra problematiza questões da expressão e da identidade de gênero e da diversidade sexual na arte feita por aqui de meados do século 20 até hoje, sob uma curadoria que provoca atritos entre conceitos preconcebidos.
A bússola aponta para além da definição do termo em inglês, relativo a pessoas que não se enquadram na binaridade homem-mulher, e que podem se intitular LGBTQs ou não. Não há didatismo nem sequência cronológica nas pinturas, esculturas, vídeos, cerâmicas, fotos e objetos. Oferecem-se estranheza, ruptura, confronto e também convivência.
Encontram-se Sandro Ka, que se coloca como artista queer, outros que abordam temas desse universo, como Nino Cais, Cibelle Cavalli Bastos e Rodolpho Parigi, e itens de museus (Pinacoteca, Masp, Margs), numa proposta de novos diálogos. Um exemplo: as telas Cruzado Jesus Cristo com Deusa Shiva, de Fernando Baril, em que a figura cristã tem os vários braços da indiana, junto ao Cristo de Guignard e ao São Sebastião de Volpi. Outro: Et verbum, uma mala cheia de hóstias, de Antonio Obá, e os estudos em grafite de um corpo masculino de João Faria Vianna.
Com mais de 223 obras de 85 artistas, a Queermuseu ficou apenas 26 dias em cartaz em Porto Alegre, e depois foi censurada novamente, pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella (que é da Igreja Universal do Reino de Deus). Ele desautorizou decisão do Museu de Arte do Rio, municipal, quando a instituição se dispôs a recebê-la. Diante da negativa, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage logo se prontificou a organizá-la.
“A polêmica já foi superada. Está demonstrado que grupos radicais difundiram fake news sobre a mostra. Para a EAV, é um momento histórico, de luta contra o obscurantismo”, festeja o diretor da escola, Fabio Szwarcwald. “Acreditamos que teremos público recorde, entre 40 mil e 50 mil por mês; está todo mundo curioso.”
Um núcleo de ação educativa realizará performances e debates, tendo como temas teoria queer, representatividade e tolerância religiosa, com LGBTQs entre os participantes, e discutirá questões levantadas pelas obras com o público.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.