RIO – Bethânia toca, Vinicius observa. Vinicius com o violão, é a vez de Bethânia prestar atenção. Imagens da capa e contracapa do maravilhoso CD Que falta você me faz (Biscoito Fino), no qual a cantora visita a obra do poeta exatamente assim: ora arrebatando o verso com a força de sua interpretação, tendo as palavras de Vinicius como aparentes coadjuvantes, ora entregando-se a essas palavras e dando a (falsa) impressão de que ela é apenas uma observadora da poesia. Porém, como se trata de Arte, com maiúscula, nunca se sabe ao certo quando é Bethânia que está com o violão, quando é Vinicius. A única certeza ao fim da audição é a da intimidade cúmplice dos dois.
Na escolha do repertório, como está parte do segredo para tal intimidade, o encontro harmonioso entre a intérprete explosiva e o lirismo diminutivo do poetinha, Bethânia diz que escolheu um repertório que tivesse alguma coisa de dramaturgia. ?Exatamente porque sou mais intérprete do que cantora? – disse Bethânia, em entrevista coletiva pela internet. ?A obra de Vinicius, 80% ou mais, foi para a bossa nova, um movimento deslumbrante, enriquecedor, mas que sempre exigiu cantores com vozes de extrema afinação, sem nenhuma interpretação. A bossa nova era antidrama, ou seja, anti-Maria Bethânia. Mas Vinicius, como poeta, e com seus parceiros, não fez necessariamente canções só para esse tipo de comportamento, e a minha escolha foi exatamente Vinicius escrevendo para teatro, Orfeu, Vinicius escrevendo dramaticamente, Modinha. O processo de escolha foi difícil, como é de se imaginar. Bethânia lembra que chegou a ter 250 canções consideradas imprescindíveis.
?Mas conversei muito com Suzana, a filha mais velha de Vinicius, e a solução foi pensar, eu só posso 14. E aí fui chegando, descobrindo, sob meu ponto de vista, os vários Vinicius que eu conheci. O garoto namorador, o poeta extraordinário com sua dor, o homem preocupado com o seu povo, achando beleza onde não se esperava que alguém visse, o homem generoso, pedindo a bênção, se dizendo de maneira extraordinária o branco mais preto do Brasil -disse a cantora, que conheceu Vinicius em 1965, assim que chegou ao Rio de Janeiro para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião.
O repertório selecionado por Bethânia, então, tem o Vinicius de dramas em tintas fortes de Modinha (?Não pode mais meu coração/ Viver assim dilacerado?) e da declamada Monólogo de Orfeu (?Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços?), em contraste com a singeleza bossanovística de Minha namorada. Tem também o poeta romântico de O que tinha de ser e o filósofo delicado de A felicidade. Tarde em Itapoã mostra sua face baiana, filiada a Caymmi, enquanto O astronauta mostra o galanteador cheio de humor, de imagens divertidas e ?espaciais? (?Quando me pergunto/ Se você existe mesmo/ Entro logo em órbita/ No espaço de mim mesmo, amor?).
Vinicius aparece até mesmo numa canção que não é sua. Nature boy, de Eden Ahbez, fecha o CD numa versão em português de Caetano Veloso, falando de um ?estranho e encantador rapaz?, que ensinou que ?nada é maior/ que dar amor/ e receber de volta/ amor?. A voz de Vinicius, cantando em inglês, encerra o CD.
?Era a música que Vinicius cantava, sempre antes de dormir. Quando ele ia embora, quando encerrava um trabalho, uma reunião, e a filha dele, Suzana, me disse que ela era ninada por ele com essa canção – revela a cantora. ?Ela sintetiza os sentimentos, a onda de Vinicius: nada é maior que dar amor e receber de volta amor. Eu acho que escolhi essa música porque é como eu acho que ele sentia.?
Pelo caráter de ?projeto especial?, pode-se pensar que Que falta você me faz, gravado há mais de um ano, é alheio à discografia da cantora. O disco, porém, dialoga perfeitamente com os recentes trabalhos de Bethânia – quase todos os arranjos são do maestro e parceiro fiel Jaime Alem. O refinamento do encontro da percussão de samba com a orquestra de cordas e o violão de choro moderno – casamento formatado à perfeição em Brasileirinho – aparece novamente neste CD. Como de costume, há espaço para outros elementos, como o acordeon de Gente humilde, que dá novos ares à melancolia da canção.
Presentes como parceiros e como influências nos arranjos, Tom Jobim e Baden Powell comparecem também de outra forma. Marcel e Philippe, filhos de Baden, e Daniel, neto de Tom, tocam em algumas faixas.
?Além de serem grandes músicos, são meninos muito lindos, bem educados, carinhosos, e aprenderam com o avô e o pai a amar Vinicius, a grandeza de Vinicius, eles têm noção da grandeza da obra de Vinicius, do grande amigo que ele foi do Tom e do Baden. Eles vieram amorosamente, fiquei muito honrada de tê-los no disco, porque como já falei, o Tom e Baden foram os compositores mais presentes, eu queria que o sangue deles estivesse ali. Foi emocionante?, finalizou.