Está no novo número da revista Filme Cultura, o de número 61. Em primeiro lugar, talvez seja necessário esclarecer o que é Filme Cultura. Viabilizada pela parceria entre o Centro Técnico Audiovisual, CTAv/SAV/MinC, e a Associação Amigos do CTAv, a publicação editada pelo crítico Carlos Alberto Mattos dedica-se à análise e discussão de questões práticas e teóricas do cinema brasileiro contemporâneo. A capa não poderia ser mais sugestiva – o cinema de gênero vive! E lá dentro – recorrente no cinema popular brasileiro desde os anos 1960, o horror volta à cena em produções de guerrilha e como metáfora social.

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Estreia nesta sexta-feira, 31, em salas de todo o Brasil o longa Quando Eu Era Vivo, que Marco Dutra adaptou de A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, romance de Lourenço Mutarelli, o autor de O Cheiro do Ralo e Natimorto. O próprio Lourenço faz uma pequena participação, como motorista. Há uma semana, Quando Eu Era Vivo inaugurou a Mostra de Tiradentes, como pérola da programação especial que homenageou o ator Marat Descartes. E falou-se muito, então, da contribuição de Dutra ao cinema de gênero no País.

Quando Eu Era Vivo chega hoje aos cinemas, justamente nesta sexta-feira em que o telespectador vai saber, enfim, que destino o autor Walcyr Carrasco reservou ao infeliz César de Antonio Fagundes em Amor à Vida. Tem gente que não aguenta mais ver César rastejar por amor a Aline, a mais primária das femmes fatales da teledramaturgia recente, e isso não tem nada a ver com o trabalho da atriz Vanessa Giácomo. A personagem é pobre, do ponto de vista dramático, mas isso não impede que César/Fagundes seja seu capacho.

Aos olhos do grande público, Fagundes, com sua bagagem de teatro, cinema e TV, talvez seja, ou é, o atrativo de Quando Eu Era Vivo. Mas o filme de Marco Dutra revela uma surpresa, que é a transformação da cantora Sandy em atriz, e boa, como você poderá conferir. Mas o protagonismo do filme é de Marat Descartes, como Júnior. Na abertura de Quando Eu Era Vivo, ele está voltando para casa, o apartamento do pai – Fagundes, chamado de Sênior. O espectador atento não terá muita dificuldade para identificar o centro de São Paulo, ou o prédio da Av. São Luiz. A localização não importa tanto, mas a casa, sim.

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Na entrevista que deu ao jornal O Estado de S.Paulo na segunda-feira, 27, Marco Dutra falou da importância que a casa tem em seu cinema, e que remete a seus medos infantis. Que fique claro – Dutra não foi uma criança que tenha sofrido abuso ou maus-tratos. Os pais, que tiveram um ascenso social, sempre se preocuparam em dar segurança e condições – um futuro – para os filhos. Mas Dutra, desde menino, sempre foi fixado em histórias de terror. Jason (Sexta-Feira 13) e Freddy (A Hora do Pesadelo) foram seus heróis. Heróis? Não é bem o termo, mas a perturbação causada pelo punhal do primeiro e as unhas afiadas do segundo embalaram a infância e a adolescência de Dutra, alimentando seus medos mais profundos.

Adulto, e cineasta, ele segue, de forma menos intuitiva, mais racional, a picada aberta por José Mojica Marins no cinema de horror brasileiro. A casa, mais até que os personagens, é o que o atrai. Havia aquela mancha na parede de Trabalhar Cansa, o longa anterior – o horror anterior – de Dutra. Há agora na casa o quartinho, onde Sênior guarda todas as tralhas que eram da mulher. Ao abrir o quartinho e colocar para fora os objetos ali guardados, ou escondidos, Júnior reabre velhas feridas e desestabiliza-se. Enlouquece.

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Posto que Marco Dutra sempre amou Stephen King, a mãe de Quando Eu Era Vivo, onipresente mas misteriosa, nunca completamente apreendida pelos filhos ou pelo espectador, tem uma dimensão maléfica que talvez tenha a ver com a mãe de Carrie, A Estranha. E o personagem de Marat, com aquele penteado esquisito – aquela peruca -, tem algo do estranhamento que Jack Torrence provoca em O Iluminado, que Stanley Kubrick adaptou de outro original de King. Pergunte a Marat Descartes. Ele vai dizer que o Jack de Jack Nicholson foi sua grande referência na criação de Júnior.

Pergunte a Dutra – ele também vai dizer que Quando Eu Era Vivo é a sua versão da parábola do filho pródigo. As possibilidades de leitura são interessantes, o clima é fantástico, senão de inquietação. A carta, o partido adotado pelo cineasta, é de gênero. Talvez o espectador não se assuste tanto, talvez a peruca seja um pouco ridícula. Dutra, que possui humor mas não se considera engraçado, diz que o filme possui dois polos. Humor e horror, mas sem se propor a ser aquilo que se convencionou chamar de ‘terrir’, nas fantasias de Ivan Cardoso. A metáfora social é menos contundente que em Trabalhar Cansa, onde havia, para começar, o desemprego. Quando Eu Era Vivo também não é exatamente de guerrilha. É bem produzido, por Rodrigo Teixeira. É benfeito. Mas, como cinema de gênero, a palavra agora é sua. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.