Se me perguntassem sobre Budapeste, a primeira ideia que viria à cabeça seria uma música popular nos palcos alemães na voz de Marika Rökk, entre as duas guerras mundiais, e que começa assim: “Die Juliska, die Juliska aus Buda-Budapeste, die hat ein Herz voll Paprika, das kein’ in Ruhe läßt”. A música fala de uma húngara de coração cheio de páprica, que mexia com a cabeça dos homens – não só a cabeça, claro. Foi um hit de Marika Rökk, famosa na Europa na primeira metade do século passado.
Sobre Marika, dá para dizer que era um coquetel de nacionalidades: nasceu no Cairo, cresceu na Hungria, passou por Paris, filmou em Londres, conquistou a Alemanha e morreu na Áustria em 2004, com 89 anos. Foi uma versão nazista de Carmem Miranda, embora às vezes com sapateado desengonçado. O certo é que dava conta do recado, fosse cantando operetas de temas tropicais ou canções ciganas.
Tirando Marika, não fosse Chico Buarque escrever um romance chamado Budapeste, narrado por um sujeito que voa de Istambul para Frankfurt e faz pouso imprevisto na capital húngara, eu não teria outra lembrança de imediato da cidade. Afinal, Budapeste pode ser uma grande cidade – sexta maior metrópole da União Européia -, mas, quando se fala em Europa, pensa-se num conjunto de quatro cidades: Paris, Londres, Roma e Berlim.
E qual a razão? Historicamente acontecem nestas cidades coisas que repercutem no resto do mundo: moda, comportamento, inventos, ensino, artes, teatro, música e literatura, sem contar esportes. As quatro sediaram Olimpíadas e Copas do Mundo de futebol. Depois, há um grupo menos fulgurante de cidades que por uma razão e outra, chamam mais atenção: Madri, Milão, Viena e Moscou. Pessoalmente, eu gostaria de conhecer Dublin, Praga, Glasgow e Varsóvia.
Muitos acham que conhecem Dublin por conta de James Joyce e de Ronnie Drew, que tornam a cidade familiar a quem os lê e ouve. Praga, por Kafka, embora acredite que a capital checa não passe de uma versão européia de Curitiba. Não sei o motivo para conhecer Glasgow, talvez por meu amigo Johnny Walker, que não me deixa sóbrio. Varsóvia, eu sei: polacas, teatro e cartazes dos artistas locais, espetaculares. Enfim, há sempre bom motivo para ir a algum lugar. Mas por que razão se interessar por Budapeste?
Se existem várias respostas, algumas podem estar no livro de John Lukacs (Budapeste 1900, Editora José Olympio, 305 págs, R$ 46,00). O autor escreve com saudade de uma cidade e tempo que não existem mais; uma cidade que em 1900 atingiu o apogeu com apenas 28 anos de idade. Lukacs nasceu na capital húngara em 1924 e foi para os Estados Unidos com 21 anos. Ele deve ter pegado um pouco do fim da festa e ficou imaginando como seria a festa no auge. E foi atrás para escrever o livro. E fez belo trabalho.
Antes que algum erudito se encrespe, John não é parente do filósofo marxista Georg Lukács, apesar de ser húngaro da gema. Claro que para quem tem um pedaço na Hungria, como a jornalista brasileira Cora Rónai – filha do tradutor Paulo Rónai, também nascido em Budapeste – o livro tem sabor ainda maior. Tanto que ela diz que se o título Fragmentos de um discurso amoroso já não tivesse sido usado por Roland Barthes, cairia como uma luva no livro de Lukacs.
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Capa do livro Budapeste, que fala de uma cidade que atingiu o apogeu com apenas 28 anos de idade. |
E faz sentido. Ele escreve obra emotiva, como as pessoas que viveram a Paris dos anos 20 e 30, fala de uma cidade em ebulição. Enquanto Viena entrava em decadência, a capital húngara fervilhava. Uma cidade jovem nascida da fusão de duas comunas centenárias à beira do Danúbio: Buda (Ôbuda), na margem direita, e Peste, na margem esquerda. Dois nomes que no Bras,il soam exóticos, por designarem divindade e doença.
Lukacs mergulha no breve período de dez anos -1896 a 1906 -de vida cultural e formação histórica, numa Paris do leste europeu, plano B para quem não foi atrás da verdadeira Paris. E Budapeste era atraente por ser a segunda cidade do império austro-húngaro, peça importante do tabuleiro político europeu entre 1867 e 1918, império que incluía Viena, Trieste, Zagreb e Cracóvia. O império se fragmentava, a Alemanha se unificava e uma nova Hungria, movida pelo nacionalismo, se forjava. Enquanto isso, os intelectuais se esbaldavam. Budapeste era uma festa.
A impressão que se tem é que a cidade antecipa em escala menor o ambiente da República de Weimar, na Alemanha; período de transição fértil e criativo que desemboca num nacionalismo exacerbado. Lukacs evoca sons, habitantes, cultura e classes, ruas e cafés, praças e feiras, fala de um frenesi repentino que pode ser ilustrado pela presença em certo período de 22 jornais diários. Budapeste tinha mais: teatros, cabarés, que intelectuais freqüentavam como uma segunda casa.
A comparação com Paris não chega a ser sacrilégio. A capital húngara se inspirou na francesa para compor o seu plano urbanístico. Os distritos são numerados no sentido horário, em círculos concêntricos, para fora, semelhantes aos arrondissements parisienses. Cada distrito está associado a um bairro da cidade e seus nomes se originam nas antigas vilas incorporadas à cidade. Os distritos vermelhos concentram-se em Buda, os azuis em Peste e os amarelos numa ilha do velho Danúbio. Em Buda está o castelo e em Peste o centro comercial. Na maior harmonia.
Lukacs, de ascendência judaica pelo lado materno, comenta o papel da comunidade judia no agito intelectual da cidade, a ascensão do nacionalismo, o surgimento do anti-semitismo e o declínio do período fulgurante. E já que o assunto é judaísmo, não se pode omitir que o anti-semitismo do período acabou custando caro, aos judeus, claro. Cerca de 250 mil foram mortos quarenta anos depois durante a ocupação nazista.
Alguém pode perguntar: “Mas quem de importante, meu chapa, este lugar produziu neste período efervescente?”. Foi época do compositor Béla Bartok, dos diretores de cinema Alexander Korda e Michael Kurtiz (de Casablanca), dos fotógrafos André Kertész e Jules Halász Brassai, dos arquitetos Zoltan Kodály e Laszló Moholy-Nagy, dos escritores Arthur Koestler (de O zero e o infinito), Sándor Brody e Gyula Krúdy. Alguns conhecidos, outros nem tanto, mas que juntos contribuíram para divulgar a cultura do país.
Enfim, vendo por este lado e aquelas pontes sobre o Danúbio, até que dá vontade de conferir Budapeste de perto, sem pouso imprevisto. Embora a cidade tenha sofrido danos irreparáveis durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente com o esforço soviético para expulsar dos nazistas, ainda estão lá marcos do final do século 19 e início do século passado como o vistoso Parlamento à margem do Danúbio e a imponente ponte Elizabeth, em homenagem imperatriz-rainha Elizabeth, mulher do imperador-rei Francisco José I. Sem contar o Teatro Nacional, o castelo de Buda e mais.
Porque, ainda que o período a que se refere Lukacs seja memorável, a cidade não é somente isto, uma vez que Aquincum – que deu origem a Ôbuda – foi fundada pelos romanos em 89 A. C. E eles e os que vieram depois também deixaram as suas marcas. É um livro para húngaro nenhum botar defeito, mas que inspira sobre outros leitores certa cumplicidade com o autor e certa simpatia pela estranha, longínqua e bela Budapeste. A ponto de incluí-la em mais um dos pontos obrigatórios para se conhecer na Europa, naquelas viagens que nunca fiz.
