Christiane Torloni estava em meio aos ensaios da peça Mulheres por um fio, montada no final do ano passado, em São Paulo, quando recebeu o convite para interpretar Haydée, de América. Depois disso, não conseguiu mais pensar em outra coisa. Mergulhou em leituras e conversas com médicos, psicólogos e psiquiatras. Resultado: adiou para este ano o projeto de rodar o Brasil com a peça. A ?revolução? que Haydée provocou em seus planos é, segundo Christiane, a melhor definição da personagem.? A Haydée não permite um não, já chega dando um pé na porta. Ela alvoroçou minha vida. Eu dizia: ?Calma, calma, espera só um instantinho. Mas foi em vão?, diverte-se.
Não demorou para a atriz se convencer de que tinha nas mãos um dos temas mais importantes de América.?Há muito preconceito em torno da cleptomania. Soube de pacientes que só revelaram o problema ao terapeuta depois de cinco anos de tratamento?, destaca. Christiane já está até preparada para ouvir?confissões? nas ruas, como ocorreu na época de Mulheres Apaixonadas. Bastou ir ao ar a cena em que Helena beijava um mexicano desconhecido em plena lua-de-mel para dezenas de mulheres infiéis se abrirem com a atriz. ?A gente vivencia uma situação com tamanha verdade que cura as pessoas de uma culpa, uma dor ou um segredo?, acredita Christiane.
Aos 30 anos de carreira, a atriz fala com serenidade da vida, do trabalho e da importância da profissão, herdada dos pais, Geraldo Matheus e Monah Delacy. Acompanha com ares de mãe coruja os primeiros passos como ator do filho Leonardo, que estreou na tevê como o Gato de Senhora do Destino. E lembra com visível emoção as centenas de cartas de fãs ?exigindo? sua volta no período que passou em Portugal, logo depois da morte do filho Guilherme, num acidente com o carro que ela dirigia. ?Como atriz, não produzo um objeto, um telefone, uma cadeira. Parece uma profissão inútil, mas ela realizou um sonho que nunca tive: ao salvar minha vida, acabei consolando outras pessoas também?, conclui, com um sorriso tranqüilo.
P – Você está acostumada a interpretar mulheres muito fortes na tevê. A Haydée, apesar do desequilíbrio, é mais uma delas?
R – Sem dúvida. Personagens como ela às vezes têm uma força muito maior até que os chamados heróis, tamanho o conflito que eles têm. Ela vai se juntar a Fernanda, de Selva de Pedra, e até a Jô Penteado, de A Gata Comeu, que era uma mulher que mandava uma criancinha dopar uma noiva no dia do casamento… Quantos anos de cadeia daria isso? Ou a Dinah, de A Viagem. Ela era uma mulher tão ciumenta, tão conturbada, que eu dizia para o Wolf Maya: ?Tem certeza que ela é a heroína desta história?? Ou a Helena, de Mulheres Apaixonadas, a própria anti-heroína. Um mês depois de a novela estrear, houve uma cena em que ela beijava outro homem na lua-de-mel e imediatamente começaram as confissões nas ruas. As pessoas não paravam de vir me confessar as coisas. Tenho certeza de que isso vai acontecer com a Haydée também.
P – Estas mulheres vêm até você naturalmente ou são produtos de suas escolhas?
R – É claro que tem a ver com as minhas escolhas, mas sempre tem um dado mágico também. Há personagens, principalmente as que existiram, como a Salomé ou a Joana D?Arc, que eu tenho certeza de que vêm para mim para que eu reconte a história delas. É uma coisa engraçada. Com Mulheres Apaixonadas, o Maneco já tinha o projeto há anos, mas estava esperando por mim. Quando ele achou que o meu dedinho tinha engordado o suficiente, me chamou para fazer. Acho que os personagens são como os amores verdadeiros. Eles vão chegando à medida em que você os reconhece, pela capacidade, pela humildade, não sei bem como, mas eles se apresentam.
P – O que mais provoca você profissionalmente hoje em dia?
R – Todos os dias penso na bênção que é esta carreira. O que ela dá para as pessoas? O que ela produz? Você não senta no trabalho de um ator, não liga para ninguém nos Estados Unidos, não alimenta o corpo, mas alimenta a alma. Eu só sou útil quando consolo alguém, quando alguém ri com uma cena minha, chora ou se emociona. As crianças excepcionais têm uma conexão extraordinária comigo. Eu sei porque as mães as levam para assistir aos meus espetáculos. Recebi na minha casa uma carta de uma menina da Sibéria. Ela tem vinte e poucos anos, tem uma deficiência e está conectada comigo desde a primeira novela minha que passou lá, acho que foi Torre de Babel. Ela dizia que eu a inspirava a levantar todos os dias para ir à escola. O que eu posso querer além disso? Ou de um rapaz soropositivo que foi ao teatro e veio falar comigo no camarim: ?Por uma hora e meia, eu esqueci que estou morrendo?. Ou das cartas de fãs que a Globo mandou para mim quando fui para Portugal… Tudo isso vale muito mais que qualquer prêmio. Tudo ganha outro sentido. Eu só preciso fazer de verdade.
(Renata Petrocelli)
Exercitando a arte do encontro
Christiane Torloni sempre acreditou na força das parcerias profissionais. Há vários anos, ela trabalha no teatro sempre com o mesmo diretor, José Possi Netto. O último espetáculo, Mulheres Por Um Fio, teve apenas um mês de ensaios. Mas Christiane ressalta que a idéia do projeto vinha sendo alimentada há seis anos. ?É como se a gente fosse criando uma atmosfera para que os personagens se apresentassem?, especula a atriz, que relutou muito antes de interpretar as três mulheres, personagens criadas por Jean Cocteau, Dorothy Parker e Miguel Falabella, unidas numa só peça pelo diretor. ?Tive de esperar, porque não estava pronta para fazer aquilo. A personagem do Miguel, por exemplo, acho que não poderia fazer nem no ano retrasado?, exagera.
Em termos de parcerias, América também é muito especial para Christiane. A novela marca o reencontro da atriz com Jayme Monjardim e Glória Perez. Jayme foi o responsável por vencer outra relutância de Christiane. Foi ele quem a convenceu a viver a protagonista de Kananga do Japão, da extinta Manchete. ?Eu estava fazendo teatro, com a cabeça em outras coisas, mas ele me provocou até que eu aceitasse?, lembra. De Glória, Christiane já tinha feito Partido Alto. Mas o que realmente ela mais admira é o encontro dos dois, autora e diretor. ?O Jayme lê a Glória de um modo muito especial. Se eu fizer a Haydée como está escrito, não é o que a Glória quer. O que ela quer é a tradução do Jayme para aquilo que ela escreveu?, tenta explicar Christiane, que teve dificuldades nos primeiros dias de gravação. ?Aos poucos, fui percebendo que o que estava escrito tinha de ter uma tradução muito específica. E isso é fantástico para o trabalho dos dois e para o meu também?, derrama-se a atriz.
