Em testamento, Villa-Lobos deixou seus direitos autorais para a Academia Brasileira de Música, que fundara em 1945. Passado meio século de sua morte, nada mais justo do que a entidade se preocupar com a perpetuação desse legado. Dessa necessidade vem o projeto Villa-Lobos Digital, que tem como norte recuperar suas partituras. Cópias dos originais, estes em papel vegetal, guardados na reserva técnica climatizada do museu que leva o nome do maior compositor brasileiro, são pautas muitas vezes com rasuras, signos quase ilegíveis e lapsos.
O trabalho, coordenado pelo maestro Roberto Duarte, especialista em sua imensa obra e vice-presidente da ABM, prevê a revisão de equívocos cometidos por Villa na avidez de transcrever os sons que imaginou, fossem por distração ou por humano esquecimento mesmo. “Quando encontrarem um acorde de sete notas, podem cortar uma delas. Não tenho tempo para fazer revisão, tenho muitas ideias para colocar no papel”, autorizou, de outra feita, o violonista Turibio Santos (à época um adolescente, hoje presidente da ABM).
É nobre o objetivo do projeto, desenvolvido depois de anos de negociações com as editoras estrangeiras de Villa (a francesa Max Eschig ficou com cerca de70% do total): possibilitar que cada vez mais orquestras toquem sua música mundo afora. “Muitas vezes o material que chega para as orquestras está em situação precária”, conta o maestro, que se debruça sobre a herança villa-lobiana desde 1975, e já mereceu o título de seu “intérprete ideal”.
“Em 1995, quando estava gravando O Descobrimento do Brasil em Bratslava, na Eslováquia, de repente os violinos pararam porque a cópia estava defeituosa. Tive que parar tudo para acertar. Isso faz com que muitas obras não sejam mais tocadas. Ele escrevia rapidamente. São 30 mil, 50 mil notas. Cabe a nós, revisores, olhar isso com muito carinho.” Duarte, que já revisou também Carlos Gomes, é autor de “Villa-Lobos Errou? – Subsídios para Uma Revisão Musicológica em Villa-Lobos”, publicação em português, inglês e francês, voltada a iniciados, que saiu em 1959 pela editora Algol, no cinquentenário da morte do autor.
No livro, com base no profundo conhecimento de sua sintaxe e numa observação obsessiva, digna de um detetive da música, como brinca o compositor Ricardo Tacuchian no prefácio, ele aponta falhas como a não transcrição de claves, notas ou mesmo dos nomes dos instrumentos. Ao mudar de folha, por exemplo, ele por vezes deixava de incluir um instrumento que constava antes e reaparece mais adiante. Pode parecer presunçoso falar em corrigir alguém sublime, mas nada mais é do que o esmero com aquilo que Villa deixou, e o desejo de vê-lo ganhar mais salas de concerto.
Idealizada pela advogada especializada em direitos autorais Marisa Gandelman, assessora jurídica da ABM, a realização é da Sarau Agência de Cultura Brasileira, que conseguiu com a CSN e a Whirpool, via Lei Rouanet, patrocínio de R$ 550 mil para a primeira etapa (era necessário R$ 1,1 milhão a mais) e agora está em busca de mais R$ 1,9 milhão que dê conta de 12 sinfonias que ficaram de fora, além das óperas “Yerma” e “A Menina das Nuvens” e de peças isoladas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.