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Prefeito do Rio caça beijo gay em HQ

Sob vaias, fiscais da prefeitura do Rio buscaram na sexta-feira, 6, nos estandes da Bienal do Livro exemplares da novela gráfica Vingadores, a Cruzada das Crianças, criticada na véspera pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB) por ter em suas páginas um beijo gay entre dois super-heróis. Não acharam. Todos foram vendidos em 39 minutos, horas antes da chegada dos agentes cuja missão, em suas próprias palavras, era encontrar “material pornográfico”. No fim do dia, o Tribunal de Justiça do Rio concedeu liminar que proíbe qualquer apreensão de obras na feira.

A interpretação do artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), determinando que “revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes devem ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo”, fez com que o prefeito fosse acusado de censura.

A polêmica criada em torno do livro desde o fim da tarde de quinta-feira (quando o prefeito postou o primeiro vídeo nas redes sociais criticando a HQ) fez com que todos os exemplares se esgotassem às 9h39 de ontem. Quando os fiscais da Secretaria de Ordem Pública (Seop) chegaram ao local, no início da tarde, não encontraram nada. “Viemos fazer uma vistoria desse possível material pornográfico”, afirmou o subsecretário de operações da Seop, Wolney Dias, que coordenou a ação de fiscalização. “A prefeitura tem poder de polícia para isso. Se as recomendações de estar lacrado e com orientação quanto ao conteúdo não estiverem sendo seguidas, nós vamos apreender o material. Essa foi a orientação que a procuradoria nos passou.”

No fim da tarde de ontem, Crivella voltou a se manifestar: “Há uma certa controvérsia na mídia sobre a decisão da prefeitura para recolher os livros que tinham conteúdo de homossexualidade, atingindo um público infantil, um público juvenil. O que nós fizemos é para defender a família, esse assunto tem que ser tratado na família. Não pode ser induzido, seja na escola, seja nos livros, seja onde for. Nós vamos sempre continuar em defesa da família”, disse em vídeo.

“No caso em questão, não havia nenhuma advertência sobre o assunto abordado”, escreveu o prefeito ontem à noite. A Bienal informou que os livros estavam lacrados – como todos os demais da edição especial da Marvel, que vêm embalados em plástico transparente e não ficam abertos para o público manusear.

‘Censura’

De acordo com a presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Suzana do Monte Moreira, a determinação do estatuto só se aplica a casos em que há imagens de nudez ou sexo explícito. Era o caso, por exemplo, das revistas pornográficas vendidas no passado nas bancas de jornal. No caso do livro da Marvel, há somente uma imagem de um beijo entre dois homens inteiramente vestidos dentro do livro, não na capa. Ela argumenta que outros livros de super-heróis apresentam beijos heterossexuais sem que isso nunca tenha sido questionado.

A especialista argumenta que o casamento (e a família homoafetiva) é reconhecido no Brasil desde 2011. E que a homofobia é considerada crime no País, análogo ao racismo. “E se fosse um beijo entre um homem e uma mulher? O Batman ou o Super-Homem beijando uma moça?”, questionou a especialista. “O prefeito está sendo homofóbico. É preciso respeitar a lei e a lei não é a Bíblia.”

Ainda de acordo com ela, mesmo que houvesse tal interpretação do ECA, o material não poderia ser recolhido pela prefeitura, pois essa é uma prerrogativa da Justiça. No máximo, explica, a prefeitura poderia notificar a Bienal. “Isso que vimos hoje (ontem) foi um festival de truculência”, disse Suzana. “A prefeitura não tem competência legal para isso; busca e apreensão é uma medida judicial, que demanda uma liminar.” Em nota oficial, a OAB manifestou “repúdio ao ato arbitrário praticado pela Prefeitura do Rio”, que, segundo a entidade, “não se justifica, já que inexiste na capa da publicação qualquer reprodução de ato obsceno, nudez ou pornografia”, afirmou, no texto. De acordo com a Constituição Federal, é livre a “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

“A homossexualidade é algo normal, que faz parte da história da Humanidade, não há embasamento legal para uma medida drástica como essa”, afirmou a advogada Debora Sztanjberg, especialista em direito autoral e autora do livro Cala boca já morreu: a censura judicial das biografias. “E censura é uma bola de neve, hoje é um quadrinho, amanhã é uma biografia, e voltaremos a um ponto obscuro da história do País.”

O estilista Carlos Tufvesson, que durante cinco anos esteve à frente da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual do Rio, lembrou ainda que uma lei municipal de 1996 (e atualizada em 2011, quando a coordenadoria foi criada) assegura a manifestação de afeto em espaços públicos. “Isso é censura e abuso de autoridade”, resumiu Tufvesson. “Está muito além das prerrogativas do cargo.”

Fiscalização

O procurador-geral do município rebateu essa linha de argumentação. “Isso não significa censura. O que o ECA estabelece, com o artigo, é a possibilidade de pais ou responsáveis terem informações a respeito do teor das publicações antes de decidirem se aquele texto se adapta ou não a sua visão de como educar seus filhos. Comparar a decisão da prefeitura de verificar o cumprimento do ECA a um ato de censura é, isso sim, tentar cercear o direito de cada família de decidir quais temas lhe são caros, quais assuntos devem ser tratados – e de que forma – com seus filhos.”

“Têm direito à livre opinião e opção quanto ao conteúdo de leitura de seus filhos, sejam eles crianças ou adolescentes. Para isso, no entanto, precisam saber qual tipo de informação seus filhos terão acesso. Portanto, reafirmo: não houve qualquer tipo de censura, mas sim o exercício do dever de informar pais e responsáveis quanto ao que se considera material impróprio ou inadequado para crianças e adolescentes”, disse o procurador.

Uma das mais aclamadas autoras infantojuvenis do País, Thalita Rebouças está autografando na Bienal, entre outras obras, Confissões de um garoto (Editora Arqueiro), em que trata da descoberta sexual de um jovem gay. “Fiquei bem chocada, muito espantada com essa ação; em 19 anos de carreira nunca vi nada parecido”, disse a escritora.

A Bienal informou em nota que o evento é plural e dá voz “a todos os públicos, sem distinção, com uma democracia deve ser”. “A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor”, informou.

Polêmicas

Esta não é a primeira vez que Crivella é acusado de censura a manifestações culturais. Em 2017, em meio à polêmica gerada pela exposição Queermuseum (que reunia obras de arte explorando questões de gênero) em outras capitais, o prefeito vetou a montagem da mostra no Museu de Arte do Rio. A exposição foi montada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. No mesmo ano, o prefeito vetou o incentivo fiscal a diferentes projetos culturais da cidade, entre eles a Parada LGBTI em Copacabana. A alegação foi que o evento não se adequava às exigências do modelo de propostas. No ano passado, também foi proibida a montagem da peça O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu, na mostra Corpos Visíveis, em que Jesus Cristo era interpretado por uma atriz transexual.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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