Pound era um gênio da literatura ou blefou?

Um dos gênios da literatura do século 20 era realmente gênio ou blefou? Ninguém responde satisfatoriamente a pergunta.

Ezra Weston Loomis Pound continua um enigma difuso que muitos desconhecem, alguns já leram ou ouviram falar, mas poucos, realmente poucos, o apreciam em suas vertentes viçosas – poeta e crítico, embora também se metesse com música e economia, especialmente no ramo das teorias monetárias.

Como crítico e tradutor é quase improvável refutar o que andou escrevendo, mas o lugar de Pound no panteão dos grandes poetas padece da atmosfera de suspense nunca desfeito.

Pound era exigente. Escreveu um romance, releu e jogou na lareira para não resistir à tentação de publicar algo sem a certeza de ser bom.

E dedicou boa parte da vida a escrever uma obra extensa e incompleta chamada Os Cantos (tradução brasileira de José Lino Grunewald), projetada para ser a Divina Comédia moderna, cheia de citações, algumas em grego.

Ele foi fazendo aquilo sem a certeza de que seria realmente o que almejava – uma nova obra máxima.O diacho é que não apareceu ninguém com estatura e respeito suficientes para ser levado a sério depois de dizer que Pound se ferrou e por qual razão.

Além de inconclusos, Os Cantos padecem do mal da incompreensão. E, pior ainda, da pouca leitura. Eruditos dizem que se trata de grande livro, mas não se esforçam em explicar; poucos se esforçam em entender e quase ninguém fala dele por aí, porque também não saberia explicar a razão de sair por aí falando de Pound.

Talvez falte a Pound alguém como ele, que olhou James Joyce e os escritos dele e saiu propagando aos quatro ventos que havia encontrado um gênio. Claro que Joyce gostou, mas também tratou de fazer seu marketing pessoal: afirmou que escrevia um livro (Ulysses) para dar trabalho aos professores de literatura pelos próximos duzentos anos.

Embora decodificado, o livro de Joyce ainda arranca cara feia de muito sujeito que tenta lê-lo. O certo é que Ulysses virou marco na história da literatura. Os Cantos andam pelos cantos.

Para que os caminhos de Ulysses e Os Cantos fossem tão diferentes, além de o segundo não ter um equivalente a Pound para alardear suas eventuais virtudes, contribuiu o comportamento de seus autores.

Enquanto Joyce levou uma vida meio dândi e não se metia em política – quando falou da Irlanda, ninguém se interessou, a Irlanda nunca despertou atenção de quem não fosse irlandês -, Pound meteu os pés pelas mãos.

Fez programas radiofônicos em defesa de Benito Mussolini e do fascismo. Aquilo não pegou bem. Todo mundo conhece a história. Mussolini se ferrou. Ele tentou fugir para a Alemanha, disfarçado de soldado alemão, com sua amante Clara Petacci.

A resistência descobriu e os dois foram executados e seus corpos pendurados de cabeça para baixo, expostos à execração pública. Destino parecido teve colaboradores de fascistas e nazistas.

Os humilhados e ofendidos estavam soltos e queriam vingança. Acusado de traição, Pound foi preso numa jaula feita com ferros retorcidos de um avião abatido e depois levado para os Estados Unidos.

E ficaria na cadeia o resto da vida se alguns advogados não provassem que o poeta era louco de pedra. Talvez até fosse. Pound fez cara de louco o resto da vida e tratou de manter a boca fechada.

Lugar de louco é no sanatório. Ele ficou treze anos num hospital psiquiátrico de Washington, até a acusação de traição ser retirada em 1958. Pound voltou para a Itália e até 1972 dedicou-se a concluir Os Cantos, tarefa iniciada em 1904.

Os brasileiros Augusto e Haroldo de Campos eram entusiastas dos métodos de Pound. Em uma carta endereçada a Augusto, Pound perguntou se o pessoal da USP não tinha interesse em contratá-lo como professor. A coisa deu em nada.

Quando morreu em novembro de 1972 aos 87 anos, Pound era uma espécie de meteoro que abriu um enorme sulco na superfície da literatura, e cuja obra magna permanecia incompreendida. Mas uma coisa era evidente. Pequeno Ezra Pound não foi.

A influência de Pound se estende sobre uma expressiva parte de tudo que foi revolução estét,ica ou estilo na literatura moderna. Os seus métodos (paideuma) de garimpagem de textos elementares continuam quase as únicas referências para quem quer navegar no turbilhão de páginas literárias produzidas pela humanidade desde alguns milênios.

Sem contar que foi secretário particular de W. B. Yeats e de uma forma ou outra influenciou gente como James Joyce, E. E. Cummings, William Carlos Willians, T. S. Eliot, de quem cortou a maior parte do poeta The Waste Land, ficando melhor que o original e merecendo dedicatória do autor: ‘A Ezra Pound, o melhor artífice’. Se os grandes o reverenciavam, eles deviam saber o que estavam fazendo. Ou não?

Aliás, sobre Yeats, que tentou aprender esgrima aos 45 anos, Pound tem uma frase deliciosa: ‘Ás vezes dava a impressão de ser até mais idiota que eu’. É só uma frase.

Claro que de idiota Pound não tinha nada, apenas se deu mal com a política. Basta ler dois de seus livros de ensaios publicados no Brasil e que servem de guias para adentrar a boa literatura. ABC da Literatura (ABC of Reading, de 1934), em que o autor dá a sua definição de clássico. Para ele, livro clássico é aquele que fica jovem para sempre. Ou seja, um livro que todas as gerações leem e sempre acham algo interessante nele.

Parodiando Dalton Trevisan, ele era do tipo que achava que o nome do escritor é feito por sua obra e não por estripulias, causas políticas ou geniais golpes de marketing – hoje em dia tem muito disso.

Se a obra não o sustentar, o escritor ou poeta pode até se tornar uma figura notável, mas por outros motivos, não por sua literatura. Em outro livro de ensaios, A Arte da Poesia, ele dá conselhos para quem quer se meter a fazer poesia.

Conselhos que valem até hoje: ‘Não use palavras supérfluas, nem adjetivos que nada revelam. Não use expressões como ‘brumosas terras de paz’. Isso obscurece a imagem. Mistura o abstrato com o concreto. Receie as abstrações.

Não reproduza em versos medíocres o que já foi dito em boa prosa. O que cansa os entendidos de hoje cansará o público de amanhã’. Era generoso ao orientar os jovens poetas. Muita gente que o leu deixou de passar vexame com poemas cretinos – e outros viraram grandes poetas.

Mais: achava que a poesia medíocre, no fim das contas, é sempre a mesma em toda parte. E em todas as línguas haverá poetas e poemas medíocres. E defendia a importância da literatura, como poucos: ‘A linguagem é o principal meio de comunicação humana. Se o sistema nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia’.

E mais: ‘O povo que cresce habituado à má literatura é um povo que está em vias de perder o pulso de seu país e de si próprio’. O velho era terrível. E tinha um faro ainda mais terrível para coisas boas. Mas também devia saber que uma coisa é farejar coisas boas, outra é produzir coisas boas.

O seu enigma ainda permanece. Até, talvez, aparecer outro Ezra Pound para decifrá-lo e mostrar às gerações seguintes o lugar de Pound, se é que o tem, na constelação dos grandes poetas e na literatura de todos os tempos.

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