Novelas

Por que a TV Globo aposta cada vez mais em remakes como ‘Pantanal’ e ‘Renascer’

osmar prado em pantanal
Osmar Prado fez o "Velho do rio" em Pantanal. Foto: TV Globo.

Antes de lançar um olhar enviesado para remakes como se eles fossem apenas sinal de que falta criatividade à indústria do audiovisual, é preciso notar que quem paga a conta do negócio busca antes de mais nada reduzir os riscos de investimento com histórias que já tiveram boa bilheteria no passado.

Enquanto o cinema de Holllywood se desdobra em franquias que prolongam a vida útil de personagens icônicos, de “Vingadores” a “Top Gun”, a Globo decidiu voltar ao universo rural de Benedito Ruy Barbosa apenas dois anos depois de uma releitura de “Pantanal”, no mesmo horário.

Vem aí “Renascer”, originalmente feita pela própria emissora em 1993. O ano de 2024 reserva ainda outro repeteco na Globo –uma nova versão de “Elas por Elas”, de Cassiano Gabus Mendes, exibida em 1982 como novela das sete, agora para a faixa das seis.

Não que seja incomum, nas últimas quatro décadas, a emissora revisitar antigos folhetins, mas isso é recurso normalmente adotado nas faixas das 18h e 19h e, raramente, no coração do horário nobre, às 21h30, quando o esforço de apostar em novos argumentos é maior.

Desde 1970, quando “Irmãos Coragem” pretendia dar à Globo o cartaz de nova era na telenovela brasileira, a emissora produziu só dois remakes para a vaga, sendo que 36 anos separam o primeiro título –“Selva de Pedra”, de Janete Clair, em 1986, ainda exibida às 20h30– de “Pantanal”.

Convém lembrar que a produção de “Pantanal” embutia o contexto de uma reparação de contas com o autor, já que a saga dos Leôncios fora recusada pela emissora em 1990 e fizera história na concorrência.

“Renascer” não dispõe do pretexto e foi inclusive o folhetim que a Globo bancou para trazer o autor de volta da Rede Manchete, dando-lhe pela primeira vez espaço na faixa nobre, com gravações em locações naturais, na Bahia, e não na cidade cenográfica do Rio de Janeiro.

Foi um tapete vermelho estendido justamente pela consagração de “Pantanal” na Manchete, emissora que faliu nove anos depois da Juma de Cristiana Oliveira virar onça.

É legítimo dizer que “Renascer” foi consequência de “Pantanal”, sina que se repete agora. A história de José Inocêncio, pai de quatro filhos que fez pacto com a sorte ao pé de um majestoso jequitibá em Ilhéus, região onde constrói um império como fazendeiro de cacau, já vem sendo reescrita por Bruno Luperi, neto de Barbosa e responsável pela releitura de “Pantanal”.

Aos 34 anos, ele é apontado como figura essencial no êxito do remake que descortinou a telenovela a um público jovem ainda resistente ao gênero e devolveu a audiência do horário ao patamar dos 30 pontos. É um nível que não fora atingido por “Amor de Mãe” ou “Um Lugar ao Sol”, suas antecessoras, nem pela sucessora, “Travessia”, ainda no ar.

Questionado sobre até que ponto o sucesso de “Pantanal” determinou a escolha por “Renascer”, o diretor da TV Globo e afiliadas, Amauri Soares, fez uma explanação da curadoria que profissionais da emissora realizam para definir os projetos da casa, sempre pautados por pesquisas que identificam preferências e comportamento do público.

Para ele, atribuir a decisão apenas ao êxito de “Pantanal” reduz a importância e o trabalho da curadoria. Jornalista de formação e atento à interpretação dos resultados de pesquisas como as do IBGE e do Pnad, Soares reconhece, no entanto, que as chances de acerto com histórias fora do eixo urbano são maiores.

“Sabíamos que ‘Pantanal’ seria um sucesso. A gente tem histórico de sucesso com novelas não urbanas, mas se fosse para repetir o sucesso de ‘Pantanal’, encomendaria ao Zé [Luiz Villamarim, diretor de teledramaturgia] ‘Pantanal 2′”, afirma.

Esta seria uma aposta mais excepcional para a faixa das nove da Globo, mas convém valorizar a importância do universo rural. Autores como Walther Negrão e o próprio Ruy Barbosa sempre ressaltaram que todos, mesmo os habituados à cidade, guardam memória afetiva do campo, onde várias famílias têm raiz.

“As novelas rurais têm histórico de sucesso por vários motivos. Um deles, que é muito importante, e lembre-se que a gente trabalha com representação da sociedade, é que as histórias têm conexão muito afetiva com as pessoas. Nós temos uma parcela muito significativa de quem compõe as regiões urbanas com um histórico muito recente de passado rural, ou da geração imediatamente anterior, ou da própria pessoa.”

“Parte dessa conexão do brasileiro com o campo é muito forte. Quando a gente vem com uma novela assim, essa conexão se ativa. Mas não se engane. O que faz a novela ter sucesso ou não é a qualidade da história. Se tivermos uma história que se passa no ambiente rural e a história não for boa, não será sucesso”, diz.

Um saudosismo mesmo inconsciente do sossego caipira funciona como escapismo da neurose do asfalto, onde são computados os principais marcadores de audiência mensurados pela Kantar Ibope Media, cuja mostra ocupa apenas as 15 regiões metropolitanas de maior consumo do país. Mato Grosso do Sul, estado onde se passou “Pantanal” e que servirá a “Terra Bruta”, título da sucessora de “Travessia”, de Walcyr Carrasco, não é uma delas.

Logo, quem mora em Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, ou Ilhéus, na Bahia, não verá escapismo em cena, já que aquele é seu cenário real. Ele pode até celebrar o fato de estar representado, ou criticar a imagem que a TV faz dele, mas não é a sua audiência que ditará a venda de anúncios, já que as regiões não estão no mapa da mostra de audiência nacional.

Em um momento no qual a fragmentação da audiência faz vídeos atravessarem telas de diferentes tamanhos por vários meios de transmissão, essa premissa vira um antídoto para frear a desidratação da hegemonia da TV Globo.

A emissora que desprezou o potencial de “Pantanal” em 1990 produziu a seguir quatro novelas rurais na faixa nobre em dez anos. Foi de “Renascer” a “O Rei do Gado”, não ao acaso hoje em reprise no Vale a Pena Ver de Novo, passando por “Terra Nostra” e “Esperança” –com imigração e lavoura. Todas de Ruy Barbosa, que adoeceu no meio da última, em 2003.

A Globo escalou então Walcyr Carrasco para encerrar o enredo e só voltaria a esse universo 13 anos depois, com “Velho Chico”, outra sinopse de Barbosa, demorando outros cinco anos para refazer “Pantanal”.

Pela primeira vez falando oficialmente sobre a escolha por “Renascer”, o diretor de teledramaturgia da Globo, José Luiz Villamarim, explica à Folha a opção pela história, em entrevista por email.

“‘Renascer’, para mim, é das mais lindas novelas que a TV Globo já exibiu. Teremos o olhar do Brasil profundo, um país rural, com suas belezas e tradições. Mas haverão questões culturais ainda muito atuais. Aí entra o olhar de renovação de nossos autores –o talento e capacidade de respeitar trama, mas com adaptações necessárias no texto, trazendo-o para contemporaneidade.”

“Isso, por si, já traz um grande frescor”, continua, e “só é possível porque há anos investimos no times de autores, que trazem novos olhares.”

Villamarim fala calçado na bem-sucedida atualização de costumes de “Pantanal”, que deu outra dimensão, por exemplo, à humilhação e superação de Maria Bruaca, personagem que foi de Angela Leal em 1990 e de Isabel Teixeira em 2022.

A questão ambiental da história tomou outro tom para o enredo e para o público, sem falar na oportunidade de inserir novos assuntos, como o racismo, inexistente no original.

Embora apenas “Renascer” e “Elas por Elas” estejam certos para 2024, a Globo estuda mais possibilidades de revival entre as sinopses em avaliação para novelas. Villamarim e Soares batem na tecla de que não há regras nem limites na escolha, desde que o script faça jus a uma série de critérios valorizados pela emissora.

A alternância temática e de cenários é um deles. É o que Soares chama de modulação. Mesmo nos períodos em que a Globo mal escapava do eixo Rio-São Paulo para contar melodramas, muitas novelas se valeram de cidades do interior fictícias para reproduzir um microcosmo do país, como a Asa Branca de “Roque Santeiro”, de Dias Gomes.

Agora mesmo há um exemplo do formato no ar com “Mar do Sertão”, passado em algum lugar do Nordeste chamado de Canta Pedra.

“Refletir sobre o Brasil profundo sempre foi uma preocupação. Nunca deixamos de se interessar por histórias rurais, é a questão da oportunidade, da disponibilidade do que tem na curadoria”, afirma Soares.

“Remake é um recurso que compõe o nosso portfólio. Não há uma política de remakes”, continua. No organograma que funciona hoje na Globo, ele representa a TV aberta que encomenda produções aos Estúdios Globo, segmento comandado por Ricardo Waddington, que produz obras para a emissora e a plataforma de streaming Globoplay.

“Quando os Estúdios Globo olham as histórias disponíveis, há as novas e as que já foram feitas para serem recontadas. A gente avalia tudo junto. Existe uma curadoria que busca as melhores histórias. Quando tem a proposta de trazer uma história de volta, ela é avaliada”, acrescenta.

Soares admite que a Globo tem “pelo menos dois remakes definidos e vai avaliar outros”. “Se forem adequados, podem entrar ou não”, afirma, sem antecipar quais. “A gente não tem cota, limite ou meta.”

Recentemente, a Globo renovou direitos do nome “Coração Alado”, novela de Janete Clair de 1980. A autora é campeã de inspiração para novas versões de folhetim, com seis títulos. O número foi alcançado agora por Ruy Barbosa, com “Renascer”. Ele viu remakes de “Cabocla”, “Sinhá Moça”, “Meu Pedacinho de Chão” e “Paraíso”, além de “Pantanal”.

A presença de dois revivals na mesma temporada já ocorreu em outros momentos da história da Globo, mas nunca foi prática das faixas mais nobres, a chamada “novela três”, originalmente “novela das oito” e há pelo menos duas décadas a “das nove”.

Em março de 1998, terminava a segunda versão de “Anjo Mau”, adaptação de Maria Adelaide Amaral para o clássico de Cassiano Gabus Mendes de 1976, na faixa das 18h. Em outubro do mesmo ano, estreava no horário “Pecado Capital”, matriz de 1975 de Janete Clair, refeita por Glória Perez.

“Irmãos Coragem”, outro título de Janete Clair, foi refeito em 1995, logo depois de “A Viagem”, reescrita em 1994 a partir da versão da própria Ivani Ribeiro exibida em 1975 pela TV Tupi. A miscelânea de “Inferno” de Dante com Alan Kardec, aliás, está sempre cotada a uma nova leitura.

Atemporal, o enredo que consola o luto com histórias de outra vida após a morte é campeã de audiência em reprises, seja no Vale a Pena Ver de Novo, seja no canal Viva, cujo sucesso no ranking de TV paga é o melhor indício de que o público adora espanar mofo de histórias antigas.

“Remake é um recurso a mais. Remake sempre fez parte do nosso porfólio e de qualquer estúdio”, assegura Soares. “As histórias que se mantêm relevantes são reaproveitadas. Sempre gosto de falar dos ‘Vingadores’. Quantos você já viu? A Disney vai continuar fazendo remakes deles a vida inteira porque a história é relevante e vai sendo atualizada.”

“Quem acompanha a história da Globo sabe que remakes são tradição. Tivemos anos com mais produções do que hoje, então por que não recontar histórias?”, endossa Villamarim, falando de “Elas por Elas”.

A trama de Gabus Mendes, diz, chega nesse olhar, com humor, protagonismo feminino e mistério que costuram a trama. “Recebemos uma releitura muito boa e temos personagens icônicos na dramaturgia, como o Mário Fofoca [vivido por Luís Gustavo], que até hoje está no imaginário.”

A percepção é reforçada no efeito de “Pantanal” e de outras releituras. Quem assistiu à primeira versão gosta de comparar, avaliar ou rejeitar, em envolvimento parecido com o da releitura de “Éramos Seis”, a mais refeita da história da TV nacional.

As novas versões flertam com a memória dos mais velhos, encontrando a surpresa de quem nunca viu, em contraste cuja repercussão ganhou proporções maiores nas redes sociais. As apostas sobre quem será o novo Mário Fofoca já movimentam conversas do novo “Elas por Elas”.

A segurança de encontrar em um remake o mesmo sucesso da versão original tem lá contratempos, como a resistência dos mais nostálgicos sobre mudanças da versão atual.

A iniciativa de refazer “Pantanal” gerou debates antes da estreia, porque a Globo talvez não conseguisse superar a repercussão da Manchete ou porque poderia dar à obra um acabamento de mais qualidade graças aos recursos atuais. Até a dúvida sobre cenas de nudez foi assunto.

Mas o eco só se deu porque a produção honrou premissas da história original e não decepcionou.

Refazer um clássico tem vantagens, mas o risco do ônus é alto e equivale ao valor afetivo do repertório no público. Releituras de “Irmãos Coragem”, “Pecado Capital” e “Selva de Pedra”, de Janete Clair, não encontraram o aplauso de quem viu os originais, e não é fácil vencer a resistência de plateia conservadora como o da TV.

Quanto maior o sucesso do original, maior o peso da releitura. Muitos rejeitaram “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, hit do cinema nacional que a Globo produziu como minissérie.

Com “Renascer”, já se discute como a nova versão poderia melhorar o que na época já foi elogiado, a começar pelo olhar do diretor Luiz Fernando Carvalho, que fugiu do padrão Globo para recriar ângulos e fotografia na ocasião. O diretor se valeu da figuração em Ilhéus para mostrar lavadeiras que cantavam à beira do rio. Eram memoráveis as cenas de Marcos Palmeira amassando cacau.

“Antes de topar qualquer sinopse, tem um olhar muito atento e afetivo ao Brasil, de sintonia com a sociedade e dialogo com o momento”, afirma Soares. “Não existe fórmula. Se existisse fórmula, Hollywood não floparia. O trabalho mistura camadas de percepção e sensibilidade, é a grande beleza.”

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