Uma sociedade em que os jovens estão desiludidos, em busca daquele “algo a mais” que as drogas e o sexo não mais oferecem. Quando isso não acontece, alguns escolhem a trágica saída do suicídio. Poderia ser perfeitamente o retrato do mundo atual, mas são essas características que tornam o musical Pippin tão atual. É o que os cariocas poderão perceber a partir da sexta-feira, 3, quando estreia, no Teatro Clara Nunes, a montagem concebida e dirigida por Charles Möeller e Claudio Botelho. “Faz anos que tentamos montar Pippin, um dos nossos musicais preferidos, mas o projeto era sempre adiado. Hoje, posso dizer ‘ainda bem’, pois estamos mais preparados agora para enfrentar esse trabalho tão desafiador como fascinante”, observa Möeller.
De fato, desde sua estreia na Broadway, em 1972, Pippin tornou-se um caso especial. “Afinal, traz o espírito de uma América afundada em uma enorme rebordosa do sexo, das drogas e das orgias, que marcaram os anos anteriores”, comenta Möeller. “A guerra do Vietnã continuava, o desencanto era geral e Nova York, especialmente a Broadway, era dominada por bandidos e prostitutas. Outros musicais traduziram esse clima desesperançoso como Follies e Company.”
Tal desalento norteia o trabalho escrito e musicado por Stephen Schwartz, um talento precoce. Em 1971, com apenas 23 anos, criou Godspell, outro musical de enorme sucesso, que lhe abriu os olhos para a bem sucedida fórmula de se usar grupos em busca de ideias como protagonistas. Assim, Pippin remonta ao século 8, em plena Idade Média, quando Carlos Magno (Jonas Bloch) é o rei cujo filho Pippin (Felipe De Carolis) vive em busca do autoconhecimento e do verdadeiro sentido da vida. Sua trajetória é narrada por uma trupe comandada por uma MC, mestre de cerimônias (Totia Meireles), que leva o rapaz até uma guerra, na intenção de se tornar herói. Frustrado com honraria, Pippin vai até sua avó Berthe (Nicette Bruno), exilada pela segunda mulher do rei, Fastrada (Adriana Garambone), em busca de sabedoria e recebe o conselho de aproveitar ao máximo sua juventude.
Insatisfeito
“Pippin é um herói com dúvida. Ele mergulha à exaustão na luta contra sua eterna insatisfação. Por isso, participa de uma guerra, vive em uma fazenda, e ainda passa a vida com muito sexo”, explica Möeller, que comanda um grupo de 18 atores. “Ele representa a busca por algo a mais, pois se sente como alguém sem um dom”, completa Botelho, empolgado com atualidade do texto. “Pippin é alguém insatisfeito: poderia ter morrido na guerra, na orgia, de tédio com a vida no campo, mas continua movido pela necessidade de ter algo a mais.”
É nesse ponto, acredita Botelho, que a mensagem do musical ecoa com firmeza os dias atuais. “A peça é sobre alguém que, se fosse hoje, até se disporia a se atirar no fogo para ter uma foto maravilhosa para o Instagram. Afinal, ter é mais importante que ser. E, como nada consegue, Pippin é induzido ao suicídio, que também é um dos males da sociedade moderna, especialmente entre os jovens.”
O sacrifício, portanto, é um elemento importante na história, pois, é preciso lembrar que foi Carlos Magno, por meio das suas conquistas no estrangeiro e de suas reformas internas, que ajudou a delinear a Europa Ocidental, durante a Idade Média. “À frente da dinastia mais longeva da Europa, Magno cristianizou o mundo, destruindo sem perdão tudo o que não representava o seu deus. Com isso, deu forças ao papado”, conta Möeller. “Stephen Schwartz escolheu Magno para reproduzir essa imagem de sacrifício do cristão. E é por isso que tudo leva ao suicídio de Pippin.”
Fábula
Antes da reclamação de spoiler, é preciso lembrar que tudo não se passa de uma fábula. Assim, depois de assassinar o pai, assumir o trono e descobrir que reinar é muito complicado, Pippin devolve a coroa a seu pai, que naturalmente retoma o poder. E se o musical é venerado até hoje, não foi apenas pela qualidade do texto e da música de Schwartz – inicialmente um brilhante trabalho de escola, Pippin ganhou aura de candidato a clássico quando o mítico encenador Harold Prince recusou a oferta de dirigir o espetáculo e indicou Bob Fosse para o projeto.
“Com Fosse, o musical ganhou camadas mais darks”, fala Möeller. “Ele vinha do vaudeville e cria, para Pippin, cenas sarcásticas, brutais até, como os personagens principais dialogando tranquilamente enquanto carregam partes dos corpos (como mãos e pés) dos inimigos mortos em batalha. Ou mesmo o número Manson’s Trio, que faz alusão a Charles Mason, o fanático que liderou o grupo que assassinou brutalmente a atriz Sharon Tate, em 1969.”
É mais um traço da insatisfação que reinava nos Estados Unidos naqueles anos 1970. Encenador genial, Fosse também era influenciado no trabalho pelas agruras que sofria cotidianamente. “Como logo se tornou careca, ele passou a adotar o chapéu coco nas coreografias. Para compensar os pés virados para fora, Fosse fazia os bailarinos virarem os seus para dentro. Finalmente, como era curvado, pedia para os dançarinos avançarem os ombros”, exemplifica Botelho.
De fato, Fosse brilhava no que outras pessoas chamariam de posições deselegantes, mas que ele tornava maravilhosas e cheias de estilo.
Pequenos mas carregados de significado, seus movimentos contrastam com gestos violentos. “Criei um estudo ao estilo de Bobo Fosse para a coreografia”, conta Alonso Barros, especialista neste quesito. “Fosse cria a figura do MC, que ironiza a música e promove uma discussão dialética com as canções, pois o que é cantado é debochado pela coreografia”, diz Möeller.
Para isso, foi escolhido um elenco afiado. A MC de Totia Meireles – feita com diabólico prazer – é devastadora, vulgar, sensual, enquanto Nicette Bruno traz os raros momentos de delicadeza. “Sou como um parênteses”, diverte-se ela. Já De Carolis capricha nas dúvidas hamletianas de Pippin. “Não é um personagem agradável, daí minha missão de conquistar a plateia.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.