O roteiro parecia já determinado. Depois dos estudos em sua Ucrânia natal, a pianista Valentina Lisitsa ganhou seus primeiros concursos. Com as vitórias, um princípio de fama – e uma mudança para os EUA. Estabeleceu-se na Carolina do Norte com o marido, também pianista, base da qual imaginava partir para correr o mundo em apresentações nos principais teatros. Mas poucos convites vieram. E, de repente, sumiram. No Natal de 2007, ofereceu-se para tocar gratuitamente em um asilo, mas acabou sendo recusada. “Era como se eu tivesse desaparecido.”

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Lisitsa era uma pianista em busca de uma plateia. E então surgiu uma ideia. Pediu a um aluno de cinema da Universidade de Miami, por onde ela havia passado rapidamente anos antes, que a filmasse interpretando um estudo do compositor Sergei Rachmaninoff. A má qualidade da imagem e do som pareceu não incomodar a audiência do YouTube, no qual o vídeo foi postado. A cada dia que passava, centenas de novas visualizações. Milhares. “Algo ali pareceu agradar às pessoas”, ela conta. E, junto com o marido, gastou o dinheiro que não tinham para comprar um equipamento de filmagem.

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Seja o que for que tenha agradado às pessoas, aquela primeira e rudimentar gravação foi só o começo. Já conta com quase 2,5 milhões de visualizações – número pequeno se comparado às quase 200 milhões que os vídeos da pianista já contabilizam desde então. Se, para muitos dos grandes nomes do mundo da música clássica, o desafio é se inserir no mundo digital com o mesmo prestígio e atenção que obtém nas salas de concerto, Valentina Lisitsa fez o caminho contrário: e o YouTube tornou-se o caminho que já a levou a se apresentar nos principais teatros, com as principais orquestras do mundo, além de assinar um contrato de gravações com o prestigiado selo Decca, para o qual já gravou desde autores como Chopin e Schumann até música para cinema.

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Lisitsa desembarcou esta semana no Brasil, onde faz uma pequena turnê. Toca nesta teraça, 21, no Teatro Alfa, em São Paulo, e depois segue para Belo Horizonte (dia 23), Porto Alegre (27) e Rio de Janeiro (29). “O mundo da música clássica fala sempre da necessidade de se abrir para novos públicos, mas permanece conservador em seus conceitos. A ideia de que para ouvir o que tocamos é necessário conhecimento prévio continua muito arraigada e deixa de lado o fato fundamental de que ouvir um concerto é como ir ver a Monalisa. Ninguém precisa conhecer a técnica de pintura para se emocionar com a experiência de estar frente a frente com ela.”

Em seus vídeos, Lisitsa aparece tocando, ensaiando, discutindo obras, mas não só. Trata de temas polêmicos, como a crítica ao tipo de formação de artistas baseada apenas na técnica. “Quando você pensa nos pianistas dos anos 1920, gente como Wilhelm Backhaus, Wilhelm Kempf, você sabe quem é assim que começa a ouvir. Essa individualidade se perdeu e não foi por acaso. Há uma forma de ensino que não te permite correr riscos, ousar, sair da norma. Porque, se você faz isso, não ganha concursos. E esse continua sendo o foco de boa parte desse mundo.”

Falar abertamente não parece, por sinal, ser um problema. Quando comenta o programa dos recitais brasileiros, por exemplo, ela brinca com a obsessão com o passado que vê no mundo clássico. “Toquei no piano que pertenceu a Beethoven. Meu Deus, ainda bem que ele estava surdo! Sua obra soa muito melhor nos instrumentos modernos”, diz, retomando logo a seriedade. “É por isso que é preciso entender o que ele criou como música do futuro.” E daí, continua, vem a noção de atemporalidade que ela acredita precisa ser ressaltada no contato com o público.

A presença na rede já lhe causou problemas. Em 2015, foi ao Twitter defender a intervenção russa na Ucrânia, e acabou tendo concertos no Canadá cancelados. “Acho que, no fundo, estamos tratando do outro lado da mesma questão, ou seja, de como o mundo da música clássica enxerga a si próprio. Muitas pessoas me disseram na época: como pianista, você não pode se colocar dessa maneira. Por que não? É o que penso como cidadã, e acredito no meu direito de me manifestar”, afirma. “Em minhas redes sociais, promovo meu trabalho, algo que minha gravadora insiste que eu faça. Mas ali digo, antes de mais nada, o que eu penso, quem eu sou. O artista não é alguém estranho ao mundo, não precisa falar só de música. Até porque não dá para dizer nada inteligente sobre música em 140 caracteres.”

VALENTINA LISITSA

Teatro Alfa. Sala A. Rua Bento Branco de Andrade Filho, 722, Sto. Amaro, tel. 5693-4000. Hoje (21), às 20h30. R$ 80 a R$ 170.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.