O francês Olivier Messiaen (1908-1992) foi mais do que um dos grandes compositores do século 20 – concorre à coroa de mais original. Católico fervoroso, improvisou ao órgão todo domingo na Igreja da Santa Trindade, em Paris, de 1931 até sua morte; deu aulas de composição no Conservatório de Paris dos anos 40 aos 80 para figuras-chave como Stockhausen e Boulez, entre outros; e atuou como ornitólogo de mão cheia.
Sua marca pessoal como criador está na pesquisa de ritmos e nas canções dos pássaros. “Ele se considerava compositor e ornitólogo em igual medida”, afirma o pianista inglês Peter Hill ao Estado. Hill dedicou os últimos 28 de seus 66 anos ao compositor. Conviveu com ele entre 1986 e 1992, escreveu três livros e prepara um quarto, sobre o Catálogo dos Pássaros, ciclo monumental para piano de cerca de 3 horas – a súmula mais original de sua criação.
O pianista acaba de lançar o CD La Fauvette Passerinette (selo Delphian), construído em torno de uma primeira gravação mundial, a da peça que lhe dá título, descoberta por ele em 2012, pesquisando os arquivos do compositor, em Paris. “É um brilhante acréscimo à produção pianística de Messiaen. Eu a descobri remexendo em seus papéis há dois anos. O manuscrito está praticamente completo. Uma anotação indica ‘agosto de 1961 em Petichet’, seu refúgio de verão nos Alpes franceses.” Fauvette Passerinette pode ser traduzida como rouxinol subalpino.
Quando veio a público o Catálogo dos Pássaros, em 1956-58, houve quem considerasse ingênua a fórmula. Longe disso. Messiaen foi fundo em seu duplo trabalho de gênio. De fato, há milhares de cantos diferentes nos cerca de 200 cadernos, alguns com mais de 100 páginas, nos quais ele anotava as melodias em passeios primeiro pela França, e depois no mundo inteiro.
E, se o Catálogo é a incontestável obra-prima do século 20, este acréscimo é importante porque, como diz Peter Hill, “tudo indica que ela abriria um segundo ciclo do Catálogo”. A concepção é muito diferente, diz Hill. “No Catálogo, a estrutura harmônica de cada peça é consequência de evocações de lugares: o mar, montanhas, árvores refletivas no rio, emolduradas pela escuridão, o amanhecer e o pôr do sol. A nova concepção é mais abstrata, trabalha só com a canção do pássaro. A canção cria a própria harmonia. É o trampolim para o estilo da Fauvette des Jardins de 1970 e do fabuloso refinamento das canções dos pássaros, presentes na harmonia e instrumentação, em São Francisco de Assis.” Esta ópera monumental de 1987 uniu suas paixões: a fé católica e o amor aos pássaros.
Outra novidade é a superposição de vários cantos de pássaros. “A mais importante”, conclui Hill, “é o sentido de desenvolvimento. Os solos na fauvette passerinette começam liricamente e vão se tornando mais ariscos, absorvem motivos de outros pássaros. Na virtuosística seção final, emerge uma tocata; a recapitulação funde as canções anteriores”.
Numa palavra, é emocionante ouvir La Fauvette Passerinette depois dos comentários do pianista, excelente em seu ofício e inteligente na organicidade da gravação. A partir da Fauvette, ele toca outras peças de Messiaen com preocupações similares, como o prelúdio La Colombe, Pièce Pour le Tombeau de Dukas, Île de Feu e Le Traquet Stapazin.
Supremo refinamento, intercala peças de nove outros compositores, numa espécie de paisagem musical que Messiaen inspirou com sua música e sua paixão pelo ensino. Todos têm algo em comum com ele. Stockhausen, Tristan Murail, George Benjamin e Takemitsu foram seus alunos. Além deles, há um precursor famoso – o Ravel dos Pássaros Tristes de Miroirs – e seu contemporâneo Henri Dutillleux, compondo, como diz o subtítulo do CD, “uma première mundial com pássaros, paisagens e homenagens”. Hill também gravou os cadernos 4-6 do Catálogo dos Pássaros sob supervisão de Messiaen. E recebeu, dele, que era raro em elogios, a frase “bela técnica, um verdadeiro poeta: sou um apaixonado admirador do toque de Peter Hill”. Precisa mais?