Gostaria que minha esposa, irmã, filha ou mãe fosse molestada sexualmente dentro do transporte coletivo ou assediada na empresa em que trabalha? Gostaria de ser preterido numa fila qualquer devido à "carteiraça" de um poderoso ou famoso? Gostaria, se mulher, fazer o mesmo serviço que um homem e receber menos do que ele? Gostaria, se pobre, negro ou de pouca instrução, receber todos os rigores da lei ou vê-la ignorada, sofrendo uma injustiça em relação a si mesmo, enquanto outros contam com o beneplácito de recursos intermináveis, manobras indecentes, subornos e outros ilícitos que os preservam impunes em situações sociais opostas? Gostaria ver a bandeira de seu país ser pisoteada, queimada por estrangeiros? Ver o muro de sua casa pichado, ser perturbado pelo som ensurdecedor do vizinho, sofrer, enfim, qualquer agressão àquilo que julga como seus direitos de cidadão e ser humano?

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Provavelmente qualquer indivíduo hígido mentalmente e com razoável equilíbrio emocional responderá não a todas estas questões. Mas por que nem sempre somos coerentes e apresentamos a mesma maneira de pensar quando se trata de uma relação em que nós somos os agentes ativos? De que estamos carentes? De educação, formação de caráter, capacidade de discernimento do certo e o errado?

Há poucas semanas o mundo acompanhou duas situações inusitadas envolvendo os muçulmanos. Primeiro foram os protestos violentos em algumas capitais européias por conta da publicação em jornais de charges do profeta Maomé. Logo depois, fato mais corriqueiro ao longo da História, pessoas da mesma religião, separados por pequenas diferenças de seitas, mas pelo abismo da ambição de poder, atacaram-se furiosamente com o registro de mais de 500 mortes em poucos dias, isto no já caótico Iraque.

Como se vê, a ignorância, a falta de tolerância e a ausência da alteridade incapacitam as pessoas ao diálogo, aprofundam as diferenças que deixam de ser aceitas como naturais e impedem a convivência pacífica. Interpretações radicais de textos ditos sagrados estimulam a imposição a si mesmos de regras rígidas e até absurdas na vida pessoal, familiar e social e, o que é pior, a obrigar os demais a aceitá-las num desenfreado desejo de conversão a qualquer custo. Paradoxalmente, no afã proselitista de salvação para todos, fracassam num dos princípios mais elementares que é a vida do semelhante.

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Sabe-se, porém, que, via de regra, outras motivações estão por trás destes embates fraticidas. O poder político e econômico são os móveis mais freqüentes para conflitos graves e o aspecto religioso torna-se somente um pretexto para o cometimento de insanidades de toda ordem. Quando as pessoas compreenderão que todos merecem respeito pelo estilo de vida que optaram levar, mesmo que inadequado do nosso ponto de vista? Desde que suas idéias e atos não prejudiquem ninguém, não temos o direito de querer forçá-los a mudar. Podemos e até devemos, usando de persuasão e bondade, despertá-los para outros ângulos da vida, mas jamais impor fórmulas particulares.

Quanto às charges de Maomé, poderíamos ter somado esta indagação às outras do início. Gostaríamos de ver nossas crenças achincalhadas, nossos santos e entes superiores, seja lá a denominação que lhes emprestamos, ou o próprio deus de cada um, serem alvos de zombarias, tripudiados grosseiramente, em nome da liberdade de imprensa? Será que estes jornalistas têm família? Gostariam de ver um filho ser humilhado na escola por ser portador de uma deficiência, por ser gordo ou pequeno demais; sofrer chacota por causa do nome ou da origem étnica ou talvez devido à cor da pele?

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Não precisamos ir mais longe. Verdade que as reações violentas foram totalmente desproporcionais e incompatíveis com as luzes racionais do terceiro milênio. A fé é um valor muito especial na vida da maioria das pessoas. Ao atingi-la mordazmente como fizeram os jornalistas dinamarqueses atingem a própria alma do crente e aquilo que parece a uns uma brincadeira inconseqüente, magoa outros profundamente. Como disse o apóstolo Paulo, "tudo me é lícito, mas nem tudo me convém". Se certas leis autorizam, mas não determinam, certos procedimentos, podemos perfeitamente nos abster. Em resumo, a regra fundamental encontramos na máxima de Cristo que, aliás, não foi o único a afirmá-la, embora disposta de formas diferentes. "Não faça aos outros o que não deseja que eles lhe façam". Isto não constitui simplesmente um preceito religioso, mas é de caráter universal.

As personalidades que orientaram a elaboração da Doutrina Espírita assim se expressaram a respeito. Na questão 838, à pergunta de Allan Kardec se toda crença seria respeitável, mesmo que notoriamente falsa, eles responderam que isto só ocorre quando é sincera e conduz à prática do bem. Na seguinte, toca na ferida: "É repreensível escandalizar na sua crença aquele que não pensa como nós?" Resposta: "É faltar com a caridade e golpear a liberdade de pensar." E segue-se na 840 que se pode opor entraves às crenças capazes de perturbar a sociedade, mas isto não altera a crença íntima. Mais adiante (Q. 842), o mestre lionês indaga se uma vez que todas as doutrinas têm a pretensão de ser a única expressão da verdade, por que sinais se pode reconhecer aquelas que têm o direito de se colocar como tal. E recebe o seguinte esclarecimento. É aquela que faz mais homens de bem e menos hipócritas, mais praticantes da lei do amor e da caridade na sua maior pureza e mais larga aplicação, pois aquelas que semeiam a desunião entre os filhos de Deus são falsas e perniciosas.

Para concluir é preciso lembrar que, em princípio, todas as religiões são boas por falar de Deus e da necessidade de fraternidade entre os homens. O mal está na sua interpretação e prática. (colaboração da Assoc. de Divulgadores do Espiritismo do Paraná. E-mail: adepr@adepr.com.br)