Pelé será homenageado em Cannes

 Pelé é nosso Rei e não precisará vestir-se de gala para ter sua noite de majestade no Festival de Cannes. Embora a ténue de soirée – para os homens, o black-tie – seja exigida na montée des marches, na solene subida da escadaria que leva ao Palais, o palácio do festival, o Rei poderá vestir-se simplesmente para a homenagem que o evento lhe presta. No dia 18, à noite, o próprio Pelé, acompanhado do diretor e produtor Anibal Massaini, apresenta, no cinema da praia, em Cannes, o documentário Rei Pelé. A intermediação, para essa exibição especial, foi feita pelos organizadores do Festival do Rio, leia-se Ilda Santiago. Será a quarta vez de Pelé em Cannes.

É muito curioso conversar com Pelé. Ele é um saboroso contador de histórias e, francamente, melhor ainda do que Pelé é o amigo e assessor Pepe, que o acompanha num almoço com o repórter do Estado, na casa de Massaini, nos Jardins. Mas Pelé tem esse hábito de se referir a si mesmo na terceira pessoa, como se houvesse uma divisão entre o cidadão Édson Arantes do Nascimento e ele. Sem arriscar nenhuma interpretação psicanalítica, é que Édson reconhece que Pelé é maior do que ele. Essas quatro letras são reconhecidas no mundo todo. Pelé, tricampeão mundial, atleta do século. É impossível gostar de futebol e não reconhecer a genialidade de Pelé como jogador, a sua familiaridade com a bola. "É um dom que você tem", dizia-lhe o pai. O dom projetou Pelé no mundo do esporte – e no show business.

No começo dos anos 1960, bicampeão mundial (na Suécia e no Chile), o jovem Pelé foi tema de um documentário que François Reichenbach, nome decisivo do chamado cinéma-verité, levou a Cannes. É curioso que Pelé esteja voltando à Croisette com outro documentário – e num ano em que o gênero foi praticamente banido após a polêmica vitória de "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, no ano passado. O tiro desferido pelo presidente do júri, Quentin Tarantino, errou o alvo. O filme não apenas não impediu que o presidente dos EUA, George W. Bush, se (re)elegesse, como obteve o repúdio unânime da imprensa na Europa. Cahiers du Cinéma definiu a vitória de "Fahrenheit" como um crime contra o cinema. Seja como foram, os documentários, salvo o de Pelé e algum outro em mostras paralelas, estão proibidos em Cannes, em 2005.

Entre "Eu Sou Pelé" e, agora, "Pelé Eterno", passaram-se quatro décadas gloriosas para o atleta. Ele voltou a Cannes com "Fuga para a Vitória", de John Huston, em 1981, e depois com Minor Miracle, no qual o próprio Huston, que o dirigira anteriormente, faz um papel. Cannes é uma loucura, reconhece Pelé, e olhem que ele tem muita experiência em eventos planetários. Mais surpreendente é vê-lo revelar que se sente ator. "Quando estava em Nova York, no Cosmos, cheguei a freqüentar brevemente uma academia. Sempre fui atraído pela repreasentação. Não vou morrer sem fazer teatro", jura. Cinema, ele fez, como personagem de documentário ou como ator. TV também fez, como ator da telenovela "Os Estranhos", na TV Excelsior, em 1969.

O cinema faz parte da vida de Pelé desde garoto, em Bauru. Ele vendia pastéis na porta do cinema para ajudar no orçamento doméstico. O primeiro filme que viu, levado pela família, foi "A Paixão de Cristo", a antiga, em preto-e-branco, que rodava as salas antigamente, na Sexta-Feira Santa, quando os filmes, digamos mundanos, eram substituídos pelo drama religioso. Mais recentemente, Pelé viu a outra "Paixão de Cristo", de Mel Gibson. Ficou chocado com o excesso de violência mas, até por isso, achou impressionante o calvário do Cristo. Seu filme preferido, pelo menos entre os que viu nos últimos anos, é "Mentes Brilhantes", de Ron Howard, que ganhou uma enxurrada de Oscars. "Tenho a impressão de que vivo cercado de um monte de gente daquele jeito", diz. O personagem de Russell Crowe, inspirado no cientista John Nash, é um esquizofrênico que vivencia, como reais, experiências puramente imaginárias.

Ele filmou, no Brasil, com Carlos Hugo Christensen, Luiz Carlos Barreto, Oswaldo Sampaio e Anselmo Duarte. Foram filmes como "O Rei Pelé, A Marcha" (adaptado do romance de Afonso Schmidt), "Isto É Pelé" e "Os Trombadinhas". Nenhum lhe deu dinheiro nem prestígio, mas ele admite que também não perdeu, materialmente, investindo no cinema. "Deu empate", resume. Dos seus filmes brasileiros, guarda um carinho especial por "Os Trombadinhas", mesmo que o último filme de Anselmo Duarte – único brasileiro a vencer a Palma de Ouro, em Cannes, com "O Pagador de Promessas", em 1962 – tenha sido espinafrado pelos críticos. O filme surgiu nas pegadas do famoso milésimo gol, que Pelé dedicou às crianças do Brasil. "Estava preocupado com a questão da infância abandonada." No filme, um empresário bem-intencionado vai a Pelé em busca de apoio para tirar crianças carentes da rua. "Fiz o filme porque acredito na causa" ele diz.

Como ministro do Esporte, no governo de Fernando Henrique Cardoso, Pelé voltou a insistir no ponto que lhe parece essencial. Chega a dizer que o Ministério do Esporte é o verdadeiro Ministério da Saúde no País. "O da Saúde, na verdade, é o da doença", explica. Para prevenir e construir um futuro, só com esporte e educação, um complementando o outro. Pelé considera-se um injustiçado. Até hoje, dirigentes responsabilizam a Lei Pelé pela crise que assola o futebol brasileiro profissional, no qual os clubes são, invariavelmente, empresas deficitárias. "Coloquei muito dinheiro nos clubes, mas ele foi desviado", lamenta Pelé, que vê, hoje, os grandes clubes endividados.

Ele provocou escândalo ao denunciar a corrupção no esporte brasileiro, mas tem certeza de que não se enganou. Assim como se engana com a vocação de ator, que sente que é, apesar de os críticos verem provas em contrário nas suas atuações na tela. Guarda um conselho de John Huston, durante a filmagem de "Fuga para a Vitória". O filme tem aquele elencão – Sylvester Stallone Michael Caine, Max Von Sydow. Passa-se num campo de prisioneiros, durante a Segunda Guerra Mundial, com os presos formando equipe de futebol para enfrentar os nazistas. "O John (o diretor John Huston) vivia me dizendo para relaxar. Eu tinha fome de gol no set, como se fosse um jogo de verdade."

Relaxar é coisa que o Rei aprendeu agora, com os gêmeos. Teve outros filhos, que ama, mas nunca curtiu a paternidade como com a sua duplinha. De volta à "Fuga para a Vitória", não esquece um incidente com Stallone, quando seu segurança cubano sentou-se na cadeira do astro e o cara surtou. "Calma", pedia-lhe Pelé, mas Stallone espumava. Aquela hierarquização num set de superprodução americana o chocou. "No Brasil, somos muito mais democráticos."

Ele ficou um pouco decepcionado com o fraco desempenho do filme de Anibal Massaini na bilheteria, mas depois "Pelé Eterno" lhe deu muita satisfação. O filme foi muito bem no mercado de vídeo, vendendo 200 mil unidades (de VHS e DVD). Foi exibido em vários foros internacionais, incluindo homenagens a Pelé como essa que Cannes vai lhe fazer agora. Nas ruas, as pessoas nunca deixaram de comentar "Pelé Eterno" com ele. Ele recorda uma mãe que não gostava de futebol, mas veio lhe agradecer pelo exemplo que ele deu a seu filho – o moleque é doido por "Pelé Eterno". Já viu inúmeras vezes. Foi outra lição do pai. "Só o talento não basta; é preciso persistência."

O repórter faz um reparo a "Pelé Eterno". Refere-se ao gol mais bonito de Pelé, o da Rua Javari, o qual não existe filmado. Massaini gastou um dinheirão reconstituindo o gol com efeitos especiais computadorizados. Saiu muito ruim. Pelé confessa que foi voto vencido. "Preferia que o gol fosse só narrado, terminando na figura do jogador que chora. O próprio espectador ia construir sua imagem do gol na cabeça." O diretor e a cúpula da distribuidora Universal no Brasil, distribuidora do filme, convenceram-no do contrário. Pena – como o Rei queria, seria muito mais emocionante.

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