Foram três meses para que as águas baixassem. Três longos meses que forçaram os moradores do extremo leste paulistano a recriar novas formas de sobrevivência. As casas térreas foram verticalizadas e a vida passou a ser vista de cima. Em 2010, o bairro Jardim Romano, que fica às margens do Rio Tietê, sofreu com fortes chuvas e grandes alagamentos.
Nesse cenário, o grupo Estopô Balaio navegou pelas ruas para conhecer histórias dos moradores, o que redundou em três espetáculos, ao longo de cinco anos. Parte desses registros em áudio e vídeo integra o documentário homônimo concebido por Cristiano Burlan e exibido nesta quarta, 27, no encerramento do Festival de Cinema Latino-americano. Em uma das cenas, um garoto cita os anteparos desenvolvidos pela família para conter a enchente na casa, como a construção de pequenas muretas que impedem o alagamento. “A água surge primeiro no ralo do banheiro”, lembra a atriz Ana Carolina Marinho. “Eles constroem compartimentos nas casas para conter a enchente entre os outros cômodos.”
A trilogia criada pela companhia seguiu o próprio fenômeno da enchente, em uma metáfora inspirada por uma moradora. Em Daqui a Pouco o Peixe Pula, o grupo capta o instante da invasão das águas, os móveis perdidos e a mudança das famílias para as lajes. “Depois das águas, o que resta é a lama”, pontua a atriz. Em O Que Sobrou do Rio, os atores e moradores vão compartilhar memórias ligadas ao lar, invadido pelo lodo.
Na última montagem, A Cidade dos Rios Invisíveis, a companhia estende seu olhar para a região, num espetáculo que sai do Brás, corta a cidade pela Linha Safira da CPTM até chegar ao bairro. Com fones de ouvido, o público faz um tour e descobre as condições das moradias, os problemas de infraestrutura e como isso, somado ao período das fortes chuvas, interfere na rotina da comunidade. Com uma população de descendentes de nordestinos, o Jardim Romano se torna uma das cidades invisíveis, presentes na obra de Ítalo Calvino.
Tantos relatos capturados pela companhia ficaram nas mãos de Burlan, que também acompanhou ensaios e sessões da peça com sua câmera. Diretor de filmes como Mataram Meu Irmão, sobre o assassinato de Rafael Burlan, ele conta que optou por uma abordagem mais simples em Estopô Balaio. “Já havia uma proposta clara na criação das peças. No início da minha carreira, eu chegava aos lugares com a câmera ligada. Aqui, eu preferi focar nas relações com os moradores.”
O diretor experimentou adicionar no filme um tipo de registro criado especialmente pelos moradores, chamado de autorretrato. “Com a facilidade do celular, eles gravaram vídeos no momento em que o bairro alagava ou quando quisessem compartilhar uma história.” Ainda que ninguém se comporte de maneira natural na frente de uma câmera, ele explica, Burlan diz que era importante a composição de materiais criados com a iniciativa dos moradores. “Tanto as peças como o filme são espaço para essas vozes.”
De posse dessas narrativas, um desafio se impôs na edição, aponta o cineasta. Ele explica que o formato documental instaura um conflito de ética versus estética. “É muito fácil articular todas as falas e transformá-las num discurso pessoal, mas não era o que eu queria. Por outro lado, como cineasta, eu também não desejava estabelecer um conceito muito formal no filme, o que muitas vezes não cabe em determinados trabalhos.”
Definido por Burlan como o seu trabalho mais simples, o diretor reitera que o objetivo foi a criação de laços com a comunidade. “É um modo de compreender o teatro e o cinema como um meio, não como fim.”
No dia 6 de agosto, Daqui a Pouco o Peixe Pula terá uma apresentação na sede na companhia. Em setembro, o espetáculo A Cidade dos Rios Invisíveis também tem previsão de voltar em cartaz. Tal como as enchentes, lembra Ana Carolina.
Embora o bairro não tenha sido atingido com a mesma proporção das enchentes de 2010, a atriz conta que, em janeiro desse ano, as casas ficaram inundadas “por dois dias inteiros”. “O que já é o bastante.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.