De acordo com a mitologia persa, Syngué Sabour é o nome de uma pedra mágica. A esse pedaço de rocha, pode-se contar tudo: seus segredos, sofrimentos, lamentos e decepções. Um dia, diz a lenda, essa pedra irá explodir e deixará livre o seu confidente, levando pelos ares tudo aquilo que lhe havia sido confiado.
Durante uma das cenas de Syngué Sabour – Pedra de Paciência, espetáculo em cartaz no Sesc Belenzinho, a personagem vivida por Esther Laccava retoma essa história como metáfora de sua própria condição. Em um Afeganistão em guerra civil, ela vela pelo marido que está em coma, ferido. E, agora que ele não pode mais escutá-la, confessa-lhe todos os medos que guardou apenas para si ao longo de dez anos de casamento.
Radicado na França, o escritor afegão Atiq Rahimi mereceu o Prêmio Goncourt – o mais importante prêmio da literatura francesa – pelo romance homônimo. No livro, ele analisa a condição submissa da mulher na cultura de seu país de origem. Também traz como pano de fundo os conflitos religiosos e políticos da região, de onde saiu nos anos 1980, logo após a invasão soviética.
Encenada pela primeira vez no Brasil, a obra merece direção de Fernanda D’Umbra. Sua proposta busca, especialmente por meio da cenografia e do figurino, fazer referência à ambientação oriental descrita no original. No palco, forrado de tapetes, as ações se concentram no pequeno espaço delimitado pelo leito. Lá, estão a mulher e seu marido inerte.
Ao longo da montagem, outros dois atores aparecem em cena. São guerrilheiros em busca de espólios, que confundem a protagonista com uma prostituta. Ela, por fim, até se apaixonará por um deles.
Na maior parte do tempo, contudo, a protagonista se entregará a longos monólogos. Dirige-se ao marido adormecido, mas transformará o público em seu interlocutor. E cúmplice.
Obrigada pelas tradições a rezar na cabeceira conjugal, ela deve, durante 99 dias, recitar os 99 nomes de Deus. Mas, cansada da inútil repetição, decide contar-lhe histórias e fatos de sua vida.
De forma entrecortada, o espectador irá receber a história dessa mulher. E se encarregará de ordená-la. O cerceamento relatado por ela não é episódico. É a regra. As leis lhe tiram direitos fora e dentro de casa. Seus carrascos não estão apenas entre os homens: cada mulher surge como potencial inimiga e espiã da outra.
Ainda que seja uma obra de ficção, Syngué Sabour foi criada a partir de um episódio verídico. Para escrevê-lo, Rahimi inspira-se na história de uma poeta afegã, assassinada pelo marido com o consentimento da própria mãe. Após o crime, o homem tentou suicídio e ficou em coma. Tal qual o personagem masculino da peça.
Em sua violência extrema, o enredo poderia reforçar a distância que existe em relação às sociedades ocidentais. Servir de discurso apaziguador, deixando-nos confortáveis na apreciação de nossas diferenças e avanços. Não é o que acontece.
A personagem principal tem desejos e anseios que ultrapassam o lugar que lhe está reservado naquela organização social. Padece também pelo afeto que lhe é negado, pelo casamento utilitário, pela angústia de estar só. Relatos que insistem em reverberar nas “democracias livres”.
Indicada por quatro vezes ao Prêmio Shell, a atriz Esther Laccava dispõe, inegavelmente, de técnica e recursos para construir sua interpretação. Por vezes, porém, permite que suas intenções precedam a ação. O rosto constrito já adianta o que virá a seguir. E, talvez, retire da plateia a oportunidade de construir seu próprio percurso sensorial. A personagem, afinal, lhe pede que tempere o seu amargo relato com sarcasmo e recue no ímpeto quando a autocomiseração se acirra.
A inspirada luz de Mirella Brandi muito faz pelo espetáculo. Consegue trazer-lhe algum respiro abstrato, quando nubla as referências de tempo e espaço. É capaz, ainda, de ampliar-lhe os sentidos quando dialoga com a trama, sem reforçar ou conduzir emoções. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.