O âncora de um telejornal começa a ler as principais notícias do dia: militares do Exército disparam mais de 80 tiros contra um carro, que levava uma família; segurança ateia fogo em crianças de creche – à medida em que narra uma quantidade absurda de notícias terríveis, o apresentador vai esmorecendo, até desabafar: “Cheguei no meu limite”. Nem mesmo a intervenção de uma produtora o convence a retomar a obrigação. Episódios como esse, de uma aparente banalidade, mas carregados de simbolismo, marcam o espetáculo Simples Assim, que estreia hoje, no Teatro Frei Caneca.
Trata-se de um conjunto de dez cenas, inspiradas na obra da cronista Martha Medeiros, que se encarregou de selecionar os casos e de adaptá-los para o teatro – apenas uma história foi criada por Rosane Lima. “É justamente meu momento mais difícil no espetáculo: quando desço para a plateia e me relaciono com o público”, conta Julia Lemmertz, que divide o elenco com Georgiana Góes e Pedroca Monteiro. Ali, em meio aos espectadores, ela vive a moça que sofre de nomofobia, ou seja, a crise provocada pelo medo irracional de ficar sem o telefone celular. “Ela segue a orientação do médico que, para compensar a ausência do aparelho, aconselhou que compartilhasse seus problemas em público.”
A cena foi criada para dar tempo e facilitar uma troca de figurino dos outros dois atores. Isso porque, com exceção de apenas um momento em que o trio se reúne, todas os demais são sempre representados em duplas. “Martha selecionou histórias que, apesar de independentes, permitiam a criação de um laço entre elas, com um personagem sempre se repetindo no quadro seguinte”, conta Julia. “O que une as crônicas é um assunto: falar desse mundo tecnológico que não incentiva o contato presencial.” De fato, os enredos refletem sobre o cotidiano, como sempre acontece com a escrita de Martha Medeiros, que provoca uma impressionante identidade com seus leitores.
Simples Assim se concentra nas relações interpessoais que marcam o mundo contemporâneo, marcado por um tempo acelerado e mediado por uma tecnologia invasiva e incontornável. No palco, despontam um casal que apenas interage pelo celular, uma mulher que contrata uma dublê de si mesma e uma jovem que decide viajar para Marte e abandonar o amante.
“Trazemos o espírito meio esquizofrênico desta época. A vida é difícil, mas a simplicidade salva. Corruptos existem, mas eles nada podem contra a morte. A tecnologia nos domina, mas o amor segue imperioso. Tudo se entrelaça”, comenta a escritora, no material de divulgação. “As cenas exploram detalhes dessas relações no cotidiano, procurando o que permanece de humano nos personagens em meio a tantas transformações.”
A forma de construção do texto cênico se inspirou em um livro clássico, A Ronda, do austríaco Arthur Schnitzler – a partir de cenas aparentemente independentes, um personagem é o elo ao sempre aparecer no quadro seguinte.
Tal estrutura motivou Rosane Lima, que colaborou na adaptação dos textos de Martha – o ponto de partida da seleção, aliás, foram cerca de 200 crônicas. “A Ronda foi escrita na virada do século 20, um período de grandes transformações sociais, morais, etc., possibilitando uma analogia atraente com o momento atual. Na ciranda de Simples Assim não surgem apenas casais, como na peça de Schnitzler, mas também relações de irmãs, amigos, empregados, o que, além de ampliar o espectro de visão da peça, contempla a variedade e o alcance das crônicas da Martha.”
O humor foi o tom escolhido pelo diretor Ernesto Piccolo na concepção do espetáculo. Para isso, colabora o talento do elenco, obrigado a mudar de personagem em segundos, ou seja, criando um novo tipo totalmente diferente. “Em determinado momento, tenho de fazer uma troca de roupa em 50 segundos”, diverte-se Julia, aventurando-se pela primeira vez em uma peça notadamente humorística.
“Fiz algumas participações nos seriado Os Normais, mas não tenho muitos trabalhos pautados pelo humor como a Georgiana e o Pedroca”, reconhece a atriz. “Mas, para fazer, eu me despi de um pudor e, ao entender a mecânica, permiti me soltar, usando, claro, todo meu repertório.”
‘SIMPLES ASSIM’.
TEATRO FREI CANECA. SHOPPING FREI CANECA. RUA FREI CANECA, 569. TEL.: 3472-2229. 6ª, 21H30. SÁB., 21H. DOM. 18H. R$ 100 / R$ 120. ATÉ 29/9.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.