O inferno são os outros. Mas nem sempre. Por vezes, está em nós mesmos toda a fonte de sofrimento. Vive dentro do corpo, e não fora, o algoz que nos açoita. Em “Balangangueri”, novo espetáculo da cia. Ludens, acompanhamos o calvário de uma mulher atormentada pelo próprio passado. “A história de alguém que empacou em um trauma”, resume Denise Weinberg, atriz que encarna a protagonista.
Escrita pelo irlandês Tom Murphy, a peça que chega sábado ao Sesc Belenzinho é, na verdade, uma junção de dois textos. Em um deles, duas netas acompanham a agonia da avó, Momo. Há anos, ela repete a mesma história. E, invariavelmente, interrompe o relato no mesmo ponto. Antes do fim. Tal qual um Sísifo, seu destino parece ser um castigo eterno e infernal. Todo dia, ela rola a pedra da sua narrativa até o alto da montanha. Para depois, em vão, vê-la desabar morro abaixo.
Na segunda obra que compõe a atual versão, não por acaso escrita no mesmo ano, acompanhamos apenas o desenrolar desse episódio que a senil senhora não consegue contar integralmente. Trata-se de uma estranha noite, quando ela e seu marido param em uma taberna e participam de um invulgar concurso de risadas. Será a partir dali que suas vidas mudarão para sempre.
Vem de longa data a predileção do diretor Domingos Nunez pela dramaturgia irlandesa. Desde 2003, montou quatro peças de autores do país. Entre elas, um texto menos conhecido de Bernard Shaw, “O Idiota no País dos Absurdos”. E, recentemente, “O Fantástico Reparador de Feridas”, de Brian Friel.
“Balangangueri” já estava nos planos da companhia havia algum tempo. Inédito no Brasil, Murphy é dono de uma obra virulenta. Neste texto, mostra-se capaz de trafegar pela morte, pelo humor, pelo desespero humano. Encená-lo, contudo, representava um desafio extra para a direção: como dar forma ao devaneio da protagonista? Como corporificar uma dimensão onírica?
Em cena, a plateia verá tempos e espaços distintos se confundirem. Uma opção que, para se concretizar, movimenta as mais diversas referências. Amálgama de símbolos de tarô com a noção de carnavalização de Mikhail Bakhtin. Encontro do universo das histórias em quadrinhos com o conceito de inconsciente em Lacan, estruturado sempre pela linguagem. “É uma peça que permite muitas leituras. Você pode olhá-la pelo viés psicanalítico ou como uma obra de literatura fantástica. Funciona de qualquer jeito”, observa Denise Weinberg.
Tantas possibilidades de interpretação demonstram a singularidade da estrutura dramática de Murphy: autor afeito aos princípios que norteiam a criação contemporânea. “A peça contraria um pouco a tradição irlandesa, que é a de fazer um teatro muito calcado no texto, na palavra”, considera o diretor. “Aqui, é como se ele escrevesse uma partitura musical, que abre espaço para uma encenação menos rígida.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Balangangueri – Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1.000). Tel. (011) 2076-9700. 6ª e sáb., 21h30, dom., 18h30. R$ 24. Até 20/11.