Estilos e escolas diferentes do humor se encontram em A Besta. Com estreia prometida para esta sexta-feira, 23, o espetáculo reúne nomes de grupos representativos da comédia em São Paulo: Iara Jamra, que integrou a emblemática Pod Minoga, nos anos 1970. Ary França, do Teatro do Ornitorrinco, uma marca das décadas de 1980 e 90, e Hugo Possolo, líder dos Parlapatões. “Juntar toda essa turma faz muito sentido em uma peça que fala sobre o próprio teatro”, comenta Alexandre Reinecke, que comemora sua 40ª direção com esse título.
Além dos intérpretes cômicos, a obra também traz no elenco atores que raramente aparecem associados ao gênero. É o caso de Celso Frateschi, muito mais conhecido por suas participações em dramas, e Priscila Fantin, que atua majoritariamente na televisão. “Há quase 20 anos não fazia uma comédia”, relembra Frateschi. “Continua sendo teatro. Mas existe uma soltura, um estado muito diferente do que vinha experimentando. Venha de uma série de tragédias. E não foram poucas nem leves.”
Pode-se acreditar que, de certa maneira, a escalação do elenco reverbere os lugares de cada uma das personagens da trama: Priscila Fantin surge como encarnação do poder estabelecido e a detentora dos recursos financeiros. Frateschi encarna o representante do teatro dito erudito. Já a Possolo cabe o lugar do palhaço anárquico. “São metapapéis de nós mesmos. O que cada um é como figura pública será usado aqui para a encenação”, diz Priscila.
Sem destoar da atual corrente de comédias americanas e britânicas que tomam os palcos da cidade, A Besta estreou na Broadway em 1995. Mereceu o Olivier Award. E, alguns anos depois, migrou para West End – o reduto teatral londrino. Escrita por David Hirson, a peça transporta o público ao século 17.
Em 1654, o diretor teatral Elomir insurge-se contra a decisão de uma princesa, sua mecenas, interessada em integrar um comediante popular à sua companhia. “É uma explícita referência à companhia do Molière”, considera Frateschi. “Até os nomes dos atores da trupe são os mesmos. Elomir é anagrama de Molière. E o autor retrata aquela fase em que o dramaturgo já fazia peças mais sombrias, como Don Juan e Tartufo.”
Com suas peças reflexivas, esse encenador real resiste bravamente à ideia de equiparar sua arte “séria” à galhofa despretensiosa de um cômico de feira. E não se dobra. Mesmo diante das evidências de que sua patrocinadora e seus atores apreciam o estilo do antagonista.
Uma pergunta paira sobre o enredo: Até que ponto a necessidade de sobrevivência pode fazer alguém abrir mão de seus princípios? “A peça propõe uma discussão para a qual não há respostas definidas. Não se sabe quem é a verdadeira besta dessa história. Ele vai revelando os incômodos. E como cada um se comporta diante disso”, aponta Possolo.
A ambientação no passado não retira da obra seu ímpeto de discutir questões pertinentes ao presente. A ética no teatro e a dependência de subsídios são alguns dos aspectos abordados. “O que não significa que a peça fique restrita apenas à metalinguagem”, pondera Possolo. “Fala-se de como as pessoas se comportam diante do que já está estabelecido e daquilo que é novidade.” Para Priscila, sua personagem coloca-se contra o conservadorismo e a favor de uma renovação de ideias.
Reinecke já trouxe inúmeros textos estrangeiros ao País. Mas vê, por parte da crítica nacional, uma postura ainda reticente diante das comédias. “É um preconceito muito velho que ainda é presente no Brasil”, diz o diretor. “Se olharmos os prêmios de teatro, fica fácil perceber quão raro é se premiar um ator ou diretor de comédia.”
Ary França faz o contraponto ampliando o alcance a restrição ao gênero. “Não é só aqui. Esse preconceito é uma coisa arraigada. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco já levantava essa discussão. O riso é sempre visto com desconfiança. Assusta. A piada é contra a ordem estabelecida. São a cara feia e a sisudez que mantêm o status quo.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.