Muita gente estuda música, busca inspirações por vários cantos, luta pela descoberta de um acorde que renove uma composição. Tudo para conseguir aquela canção tão sonhada, que seja bonita de ser ouvida e facilmente assimilável pelo grande público.

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A beleza e o sucesso são interesses finais de quem trabalha com música – o que é muito natural. Todos nós queremos fazer nosso trabalho bem feito, e também sermos bem-sucedidos em nossas áreas de atividade. Mas imagine conquistar a consagração – pela qualidade e pela repercussão de seu trabalho – sem ter todo o conhecimento que outros têm.

É o feito do professor de zoologia Paulo Emílio Vanzolini, de 85 anos bem vividos. Como relata o Dicionário Cravo Albin, “no final da década de 1940, embarcou com a esposa para os Estados Unidos e lá tornou-se Doutor em Zoologia, pela Universidade de Harvard. Nos Estados Unidos, conviveu com músicos de jazz em Nova Orleans. De volta ao Brasil, trabalhou na produção de programas para a TV Record, na década de 1950. Diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, entre 1963 e 1993, tornou-se um dos zoólogos mais respeitados pela comunidade científica internacional. Aposentado compulsoriamente, continuou ainda a desenvolver suas pesquisas no Museu, trabalhando de segunda a sábado. No Museu de Zoologia da Usp, organizou uma das maiores coleções de répteis do mundo. Com o próprio dinheiro montou um biblioteca sobre o mesmo tema”.

Tudo bem. Se Paulo Vanzolini é um dos maiores zoólogos do planeta, é porque estudou muito, certo? Mas é que aqui não estamos falando de zoologia, mas sim de música.

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E Vanzolini está na história da moderna Música Popular Brasileira por conta de pelo menos dois clássicos – compostos exclusivamente por ele, que confessa não ter conhecimento para diferenciar o modo maior e menor de uma canção.

Que músicas são essas? A primeira, composta em 1945, é Ronda. Não reconhece de primeira? Certamente reconhecerá quando ler os versos: “De noite eu rondo a cidade / a te procurar sem encontrar / em meio de olhares espio / em todos os bares você não está / volto pra casa abatida / desencantada da vida / o sonho, alegria me dá / nele você está…”.

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E principalmente ao ler os últimos versos: “Porém / com perfeita paciência / sigo a te buscar / sem encontrar / bebendo com outras mulheres / rolando um dadinho / jogando bilhar / e neste dia então / vai dar na primeira edição / cena de sangue num bar da avenida São João”.

Ronda é um clássico. Nenhuma música é tão representativa de São Paulo (nem Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, nem Sampa, de Caetano Veloso, que inclusive cita a melodia de Ronda em seu encerramento) como a composição de Paulo Vanzolini.

Ouvi-la, ou mesmo ler a letra, transporta o ouvinte – ou leitor -para as ruas escuras do centro velho da cidade mais importante do País. Você “vê” a protagonista da música procurando seu amado pelos bares, olhando e sendo olhada por todos, até o momento em que, em pleno desespero, promete matá-lo quando o encontrar “bebendo com outras mulheres, rolando um dadinho, jogando bilhar”.

Para completar, a imagem sensacional da capa de jornal com a manchete “Cena de sangue num bar da avenida São João” – impossível não associar com o antigo “Notícias Populares”.

A canção teve uma história bastante peculiar. A primeira gravação de Ronda é de 1953, de Inezita Barroso (outro patrimônio da música paulista), feita com vários ases dos estúdios (como Zé Menezes e Chiquinho do Acordeon), mas que não repercutiu. Era o lado B do compacto que lançava A Moda da Pinga.

Apenas no final dos anos 1960s a música saiu do limbo e entrou para a história com as versões de M&aacut,e;rcia – hoje conhecida como a esposa do locutor esportivo Sílvio Luiz – e Cláudia Morena. Em 1978, no álbum Álibi, Maria Bethânia consagrou a canção, que parece ter sido composta para ela.

Nesta música, Vanzolini se consagra como o grande cronista da música de São Paulo. Sua influência nos compositores mais jovens é notada, tanto pelo retrato cruel da cidade, quanto pela fina ironia e pelo estilo autodestrutivo dos protagonistas. Ronda ecoa na turma de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, nos pré-punks do Joelho de Porco e no humor de Premeditando o Breque e Língua de Trapo.

Outro clássico composto por Paulo Vanzolini é Volta Por Cima. Composição que entrou no imaginário popular e no léxico -está no Dicionário Aurélio: “Dar a volta por cima. Superar uma situação difícil: ‘ali onde eu chorei/ qualquer um chorava/ Dar a volta por cima que eu dei/ quero ver quem dava”.

É o hino daqueles que perderam uma batalha, mas que não perderam a guerra: “Um homem de moral / não fica no chão / nem quer que a mulher / lhe venha dar a mão / reconhece a queda / e não desanima / levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima…”.

Quantos compositores gostariam de ter duas músicas entre as mais importantes de todos os tempos? E que uma delas tivesse uma locução que entrasse no vocabulário popular? Paulo Vanzolini escreveu seu nome na história da MPB, sem a soberba de muitos músicos que hoje estão na vanguarda.

E merece as reverências que recebeu nos últimos anos, inclusive com o documentário “Um Homem de Moral”, do cineasta Ricardo Dias. Bom saber que grandes nomes como Vanzolini recebem homenagens ainda em vida.