No Dicionário de Cinema, Jean Tulard é duro com Paul Mazursky – diz que o ex-ator de Richard Brooks (em Sementes da Violência, de 1954) virou um diretor ambicioso, intimista e que quis ser o retratista da classe média norte-americana, mas lhe faltava um pouco de vigor e de crueldade para ser realmente efetivo. E Tulard acrescenta que os filmes de Mazursky eram na maioria das vezes aborrecidos. Cabe a pergunta – aborrecidos como? Mazursky, que morreu na segunda-feira, 30, em Los Angeles, de parada cardíaca, tinha 84 anos. Há tempos deixara de dirigir, mas no imaginário do cinéfilo seus melhores filmes permanecem vivos – e muitos deles mais atuais que nunca.
Pode-se até achar que o primeiro Mazursky beneficiou-se de um certo oportunismo. Em 1969, a liberalização do Código Hays, que disciplinava o uso do sexo e da violência em Hollywood, acompanhava as mudanças comportamentais que haviam marcado a década. “Faça amor, não faça a guerra” era um slogan da época e Mazursky contou, em Bob & Carol & Ted & Alice a história de dois casais (Natalie Wood, Robert Culp, Elliott Gould e Dyan Cannon) que ensaiavam brincadeiras eróticas, trocando de parceiros na cama. Em plena era do amor livre – e da minissérie, e da pílula -, o cinemão talvez estivesse apenas correndo atrás da realidade, mas o filme tinha/tem um charme que permanece até hoje.
Como cronista social, o cinema de Paul Mazursky confronta seus personagens com um mundo em permanente ebulição. Pode ser a história de Jill Claybourgh, abandonada pelo marido em Uma Mulher Descasada; a de um músico russo que aproveita uma turnê pelos EUA para pedir asilo e se choca, em mais de um sentido, com a crueldade do paraíso americano (Moscou em Nova York). Mazursky era bem mais que o diretor e roteirista – sempre acumulou as duas funções – sem vigor que Tulard deplorava. E ele tinha o timing da comédia, sabia construir um bom drama.
Harry, o Amigo de Tonto acompanha a viagem de um velho com seu gato, em busca de si mesmo, através dos EUA. Art Carney ganhou o Oscar e não é despropositado dizer que Mazursky fez a versão agridoce de Morangos Silvestres, a obra-prima de Ingmar Bergman. Baseando-se em Boudou Salvo das Águas, o clássico de Jean Renoir, fez Um Vagabundo na Alta Roda, em que o sem-teto Nick Nolte, depois de cair na piscina e subverter a vida de uma família – como Terence Stamp em Teorema, de Pier-Paolo Pasolini -, vai parar na cama de Bette Midler, e o sexo entre eles é visto do ângulo do cachorro de madame.
Bette Midler voltou em seu cinema e foi coprotagonista, com Woody Allen, de Cenas Num Shopping. Mazursky apropriava-se de novo de Bergman – Cenas de Um Casamento. Pode-se dizer que ele nunca foi denso nem profundo como Bergman, e não foi mesmo.
Mas, em compensação, nem em seus filmes mais ‘livres’ – Mônica, o Desejo e Sorrisos de Umas Noite de Verão, nos anos 1950 – o ainda jovem Ingmar fez um filme como Próxima Parada, Bairro Boêmio, de 1976. Havia muito de autobiográfico na história do garoto que quer fazer teatro e se estabelece em Greenwich Village. A mãe, interpretada por Shelley Winters, é possessiva. Os amigos que cercam seu menino são libertários. O tempo do filme é marcado pelas tentativas de suicídio de um integrante do grupo, depressivo e que não consegue assumir a própria identidade (sexual, inclusive).
Cada vez que se anuncia o suicídio, o grupo irrompe na casa e tudo termina em festa. Mazursky tinha de ser muito bom para manter a unidade dentro da mudança de tom, da comédia para o drama e até a tragédia que impregna seu Bairro Boêmio. Um espírito europeu? Sim, pois não se pode esquecer que fez o seu Jules e Jim (Willie e Phill). E quanto a ser cruel, que prova melhor do que a sua versão de Inimigos, Uma História de Amor, de Isaac Bashevis Singer? O cinéfilo deve a Mazursky muitos bons filmes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.