Pasolini ganha retrospectiva no CCBB

Pier-Paolo Pasolini nunca se esqueceu que seu irmão foi assassinado por fascistas, nas últimas semanas da 2.ª Grande Guerra. Terá sido por isso que ele se transformou num polemista, e que elegeu o perigo representado pelo neofascismo como tema preferido de suas denúncias? Ou terá sido porque, atraído por uma estética mística da miséria, o jovem Pasolini, nascido em Bolonha, em 1922, ao chegar a Roma deixou-se seduzir pelos quarteirões pobres, que gostava de frequentar, e neles descobriu como os jovens, como ele, podiam-se deixar levar por ideologias totalitárias, que canalizavam sua revolta social? São questões que sempre percorreram a obra de Pasolini, do primeiro filme, Accatone, Desajuste Social, com Franco Ciotti, de 1962, até o último, Saló, ou Os 120 Dias de Sodoma, de 1975.

Todo Pasolini estará em revisão, a partir desta quarta-feira, 22, no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo. Não é muito, em termos de quantidade. Em 13 anos de carreira como diretor, Pasolini fez pouco mais de uma dúzia de longas e alguns curtas para antologias. Antes disso, e justamente por seu conhecimento dos bairros pobres – de seus personagens e seu linguajar -, escreveu roteiros para filmes de Federico Fellini e Mauro Bolognini. Foi também ator – para Carlo Lizzani. Pier-Paolo, marxista cristanizado/católico comunista, viveu pouco, mas viveu intensamente. Produziu muito, e deixou um legado que ultrapassa filmes e roteiros. Sua obra escrita – poesias, romances, teatro, ensaios – não repercutiu menos. Seu brutal assassinato – na madrugada de 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia – somou às circunstâncias da vida.

Quase 40 anos sem Pasolini, e sua voz ainda repercute nas consciências. Um amigo e colaborador, o ator Nineto Davoli, estará presente no CCBB para se encontrar com o público, contar um pouco sobre o Pasolini que conheceu e como ele foi profético ao antecipar o controle da mídia pelo neofascista Silvio Berlusconi, prevendo que dias sombrios iriam toldar o horizonte italiano. A programação, com o título Pasolini – Quando o Cinema se Faz Poesia e Política de Seu Tempo, não exibe apenas os filmes do diretor mas também os que se fizeram sobre ele (Pasolini – Um Delito Italiano, de Marco Tulio Giordana; Pasolini Prossimo Nostro, de Giuseppe Bertolucci; Via Pasolini, de Igor Skofic) e tem até uma conexão Brasil, sobre como vida e obra de Pasolini repercutiram no cinema brasileiro (Orgia ou O Homem Que Deu Cria e Contestação, de João Silvério Trevisan; A Idade da Terra, de Glauber Rocha; Tatuagem, de Hilton Lacerda; Dramática, de Ava Rocha).

Nos primeiros filmes, Desajuste Social e Mamma Roma, com a diva neorrealista Anna Magnani, Pasolini provocou um choque ao colocar de novo, na tela, os pobres. No começo dos anos 1960, a Itália não era mais a nação derrotada na guerra. Reerguera-se economicamente e autores como Federico Fellini e Michelangelo Antonioni agora filmavam as mudanças comportamentais dos arrivistas e a crise existencial dos muito ricos. Em 1964, ele se firma como uma das personalidades mais ricas de seu tempo com O Evangelho Segundo Mateus. O espírito evangélico sobrevive/resplandece na filmagem, em preto e branco, realizada em ásperas paisagens da Palestina e causa espanto que Pasolini escolha seu Cristo tão pouco conforme à iconografia cristã (Enrique Irazoqui, um estudante espanhol). Marxista, místico e sensual, o Evangelho segundo Pasolini desconcerta o Vaticano, que só este ano, passado meio século, publica a crítica redentora, saudando o filme como obra-prima.

Há, em definitivo, um caso Pasolini, mas é o filme seguinte que vai dar a medida da provocação do autor. Uccellaci e Uccellini, lançado no Brasil como Gaviões e Passarinhos – literalmente seria Pássaros Grandes e Pequenos -, mostra Totò e Nineto Davoli como andarilhos que percorrem a estrada em busca… do quê? Pode ser a felicidade, a santidade, a consciência política. Essa coisa que buscam nunca é explicitada, mas não é só o tom. A forma também desconcerta. Pasolini filma mais uma vez em preto e branco, um episódio mostra a dupla de protagonistas como irmãos franciscanos que, à maneira do arauto de Deus – Francisco -, dialogam com os pássaros. Com Gaviões e Passarinhos, Pasolini toca a essência de sua formulação conceitual. Não lhe interessa o cinema narrativo, de prosa. O que ele quer fazer é um cinema de poesia e logo virão suas incursões na psicanálise e nos mitos clássicos. Édipo Rei, Medeia.

A história de Édipo começa no mundo contemporâneo, representado por ruínas africanas, recua até a Grécia antiga e volta ao mundo contemporâneo. Na abertura de Medéia, o centauro explica ao menino que tutto, tudo é santo. E aí veio o escândalo de Teorema no Festival de Veneza de 1968, o ano que não termina nunca.

Um personagem misterioso – um anjo? -, interpretado por Terence Stamp, irrompe na vida de uma família da alta burguesia. Faz sexo com todos – pai, mãe, filhos, a empregada – e o efeito é de graça. O pai doa a fábrica aos operários, a doméstica vira mística, a mãe cede a uma sexualidade sombria. A parábola de Pasolini é considerada profana, acusam-no de querer impor sua homossexualidade ao mundo, mas o júri do Ocic, a Oficina Católica Internacional do Cinema, lhe outorga seu prêmio ecumênico. Ele sorri, enlevado como seu anjo, antes de retornar ao mundo pagão com Pocilga e liberar de vez a sexualidade com base em clássicos da literatura erótica, compondo sua chamada trilogia da vida – Decameron, Os Contos de Canterbury e As Flores das 1001 Noites.

Ao longo dos anos 1960, ele veio fazendo esquetes de filmes coletivos – La Ricotta, em Rogopag; A Terra Vista da Lua, retomando os personagens de Gaviões e Passarinhos, em As Bruxas; A Flor de Papel, em Amore e Rabbia etc. Em 1970, fechando um ciclo, preside o filme coletivo 12 de Dezembro, proposto por uma associação chamada Lotta Continua. A luta continua… 12 de Dezembro, que permanecerá clandestino, investiga as circunstâncias do assassinato do anarquista Pinelli. A terra, a Itália, a partir daí, vai tremer. Começam os anos de chumbo do terrorismo político e da repressão do Estado. O Pasolini pós trilogia da vida volta ao combate, e faz Salò. Em 1944-45, nos estertores do regime, Mussolini estabelece sua ‘república’ em Salò. Pasolini recria o episódio de forma realista, buscando inspiração em Sade. A denúncia do fascismo vira inferno de escatologia, estupro e sangue.

Neofascistas reagem

Pasolini é insultado, recebe ameaças de morte. Nada disso era novidade para ele. Novidade é que os negativos do filme são roubados do laboratório. Ele filma de novo e, como diz, ‘mais enojado ainda’. Um tribunal italiano vai decidir se o filme poderá ser exibido. E, então, na madrugada de 2 de novembro, ocorre o assassinato. Um carro passa sobre seu corpo e rosto até torná-lo irreconhecível. Um garoto de 17 anos assume o crime e diz que o cometeu sozinho, para se defender do assédio sexual do diretor. É franzino, Pasolini é um homem vigoroso.

Os amigos (Nineto Davoli, Laura Betti) denunciam a conspiração, a imprensa fascista e a Justiça decretam que foi um banal incidente de ‘costumes’.

Quatro décadas fornecem um bom distanciamento para que se possa reavaliar o fenômeno Pasolini. A par das exibições de filmes, ocorrerão debates. Para completar o panorama seria bom se os roteiros também pudessem ser (re)discutidos. Ele escreveu As Noites de Cabíria para Fellini e ninguém duvida do aporte do diretor. Já o caso de A Longa Noite de Loucuras, O Belo Antônio e Um Dia de Enlouquecer é mais complicado. Embora grande realizador, Bolognini não dispõe da reputação de um Fellini e sua contribuição tende a ser minimizada. Os filmes seriam de Pasolini, e isso é injusto. Pasolini teve seus padrinos – Carlo Lizzani, Carlo Lizzani, Carlo Lizzani. Duas vezes foi ator para ele – um pequeno papel em O Corcunda de Roma, outro maior no spaghetti western Requiescant/Réquiem para Matar. Sua relação com a Magnani não foi das melhores, mas, de maneira geral, conseguiu formar sua trupe de fieis, atros e estrelas como Silvana Mangano, Totò e Terence Stamp, mas também ‘gli amici’, Franco e Sérgio Citti (que virou diretor), Nineto Davoli e Laura Betti. Ela virou uma espécie de sacerdotiza do culto a Pasolini, criando uma associação e lutando, não só por Justiça no caso do assassinato, mas também para manter viva sua lembrança.

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