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‘Parecia um êxodo bíblico. Eram hordas e hordas de pessoas’

Eu estava numa cidadela no interior do Tennessee. Lá mesmo, na minha escola (Unicoi County High School), eu já subvertia os meus colegas com LPs de bandas de rock como o MC5, Jimi Hendrix, Joplin, Cream e Jefferson Airplane.

Para o horror dos papais e mamães caretas, eu vencia a batalha convertendo a galera pro meu lado. Meu arsenal era grande e consistia de revistas como Ramparts, Rolling Stone Magazine e assim por diante.
E, com meus 15 anos recém-completados, propus uma espécie de caravana com quatro de nós rumo ao Festival de Woodstock.

Chegamos. Mas só conseguimos chegar no último dia. Sim, a cena que vi era épica. Parecia um êxodo bíblico. Eram hordas e hordas de pessoas, de gente “groovy”, freaks and “far out” people indo embora e voltando pra onde quer que seja que voltariam.

E assim a minha chegada foi uma coisa parecida com a foto da Serra Pelada de Sebastião Salgado. Todos os seres cobertos de lama, todos num encanto e desencanto por terem vivido um evento único na história: eram parte de 500 mil pessoas unidas sob o lema do “make love, not war”. Não era Altamont com os Hells Angels esfaqueando um fã desesperado por Mick Jagger. Aqui deveria ter se encontrado a paz. Essa que todos cantavam. Todos, menos Abbie Hoffman. Depois eu volto a ele.

Ao som de Hendrix tocando o hino americano distorcido, com sons de bombas, rajadas, eu senti uma espécie de desespero (típico de fim de festa) e a certeza de que o mundo jamais seria o mesmo depois disso.

Lama. Woodstock era pra ter sido “O lugar onde tudo começou”, mas a lama do último dia conseguiu inverter isso para “o lugar onde tudo acabou”.

Sim, essa lama virou tragédia e, um ano depois do festival, Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison estavam mortos. Somente um ano depois.

Conseguíamos protestar contra a Guerra do Vietnã ou apoiar Angela Davis e Stokely Carmichael. Podíamos reunir forças ouvindo e aplaudindo os discursos de Malcolm X (morto em 1965) ou Muhammad Ali.

Um ano antes de Woodstock, dr. Martin Luther King Jr. havia sido assassinado (no mesmo Tennessee onde eu morava), mas a “March on Washington (6 anos antes de Woodstock) ganhava imensa força e seu berro lindo “I have a dream” ainda ecoava pelos nossos cérebros e nos cérebros de quem mantinha alguma lucidez.

Sim, eu assisti ao início do fim de um sonho. “E quem nem sequer dormiu num sleeping bag nem sequer sonhou e John Lennon, no mesmo ano, decretou o fim do sonho.” Lennon decretou um muro entre nós e não se podia ignorar esse muro. O muro das lamentações, hippie, yippie, style, o muro construído pela desilusão de Lennon, Jerry Rubin e Abbie Hoffman e pelo cinismo de Andy Warhol.

Me lembro da conversa que tive com Abbie Hoffman no apartamento da minha diretora de arte do New York Times, Jerelle Kraus, década de 80. Eu queria saber tudo sobre a coronhada que havia levado de Pete Townshend, líder do The Who.

Hoffman interrompeu o desempenho do The Who para tentar falar contra a prisão de John Sinclair, do Partido dos Panteras Brancas. Ele pegou um microfone e gritou: “Eu acho que isso é um monte de merda enquanto John Sinclair apodrece na prisão”.

Hendrix. A morte de Hendrix e de Joplin encobriam os lindos sons do Star Spangled Banner que Jimi Hendrix tocou lá, em plena chuva, plena lama, mas…

Mas mesmo tendo sido enterrado, soterrado, coberto pela lama que nos assola até hoje, confesso que não houve nenhum outro momento mais sublime em minha vida. Nenhum outro. E quando sonho com aquela lama nas madrugadas que passo acordado, tenho quase certeza de que o sonho ainda não acabou.

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