“Nenhuma cidade é hoje como era há 100 anos, e isso inclui Nova York, Berlim, Tóquio, São Paulo”, comenta o escritor, jornalista e biógrafo Ruy Castro. “Nem era para ser, porque a fila anda. Mas não conheço nenhuma cidade que tenha tido, como governantes, desastres em série como Brizola, Moreira Franco, os Garotinhos, Benedita da Silva, Sergio Cabral, Pezão e, atualmente, Wilson Witzel, além do bispo Crivella – o pior prefeito na história da cidade -, e continue funcionando. O Rio continua.”
A resiliência da cidade tradicionalmente conhecida como Maravilhosa é motivo de orgulho para ele, mineiro na origem, mas fluminense por escolha.
E, para mostrar que o Rio oferece a própria história como sinal de resistência, Castro lançou Metrópole à Beira-Mar (Companhia das Letras), seu livro mais difícil de fazer, mas talvez seu mais completo – habituado a escrever biografias, em que um personagem é o ponto central, agora ele precisou reconstituir a pulsação de uma cidade a partir de centenas de minibiografias.
Metrópole à Beira-Mar detalha o cotidiano do Rio na década de 1920, especificamente entre o carnaval de 1919 e a Revolução de 1930. Nesse período, a única cidade brasileira com mais de 1 milhão de habitantes e com mais lâmpadas elétricas que Paris fervilhava na modernidade, do jornalismo (eram 16 diários), a música, o teatro e o cinema até as artes plásticas, a arquitetura e a ciência.
Ali estavam os mais badalados cafés, frequentados por intelectuais e socialites, que ditavam a moda seguida pelo País. Uma cidade diferente da atual e cujo fascínio continua imbatível, como Castro conta na seguinte entrevista.
Quais dimensões políticas, sociais e filosóficas poderiam explicar a evolução apresentada pelo Rio nesta década de 1920?
O Rio era a metrópole, o caldeirão, a vida real. Tinha uma composição social riquíssima, com gente de todas as classes sociais e de todo o Brasil se misturando. Tinha famílias muito ricas, como os Guinle, os Lage, os Rocha Miranda, interessadas em música popular, ópera, teatro, e uma elite internacional atuante, que era o corpo diplomático. E, desde aquela época, o Rio já praticava a mistura de alta e baixa cultura. O marido da quituteira tia Ciata, em cuja casa na Praça Onze nasceu o samba Pelo Telefone, era o macumbeiro oficial do presidente Wenceslau Braz. Ruy Barbosa era leitor da Tico-Tico, revista para crianças. Villa-Lobos tocava piano em bordéis. O Rio não vivia parado. Em 1920, a cidade estava pronta para as tremendas modificações que surgiam com o pós-guerra.
E qual é a importância da imprensa, especialmente das revistas, na forma como cada periódico apresentou o Rio de Janeiro?
Aquele era o mundo da palavra, nos livros, jornais, revistas, caricatura, teatro, recitais de poesia, conferências. O Rio tinha uma imprensa enorme, com quase 20 jornais diários, dezenas de revistas semanais e outras tantas mensais. O cosmopolitismo da cidade também favorecia isto – um jornal podia rodar uma edição às 9 da noite porque sabia que, a pé ou de bonde, haveria gente nas ruas pela madrugada adentro. Afinal, eram quase 1,2 milhão de habitantes. E o Rio já era tratado pela imprensa como sempre seria, sem contemplação – era a cidade da imoralidade, dos crimes, das negociatas, dos escândalos, da politicagem. Ao mesmo tempo, era a cidade do poder e, pela intimidade que o carioca tinha com ele desde 1808, esse poder era tratado com a casca e tudo. Os caricaturistas, os autores do teatro de revista e, a partir de 1920, até os compositores populares não davam trégua aos políticos – Arthur Bernardes, futuro presidente da República, quase foi destruído pela marchinha Ai, seu Mé.
Por outro lado, naquele período pós-guerra, é possível dizer que humor e nacionalidade pareciam elementos incompatíveis?
Por que seria? O humor era crítico, e não há nacionalidade sem crítica. Mas a crítica não se limitava ao humor, ia também às vias de fato, à revolução. O episódio da revolta do Forte de Copacabana, em 1922, que refletiu um espírito de conspiração contra o Estado atrasado e de eleições viciadas, foi terrível – pouco mais de dez homens foram massacrados por 3 mil soldados do Exército na calçada de pedras portuguesas à beira-mar. O incrível é que, naquela mesma noite, o pianista Arthur Rubinstein fez o lançamento mundial de uma peça de Villa-Lobos no Teatro Municipal. A mesma cidade podia absorver, em questão de horas, uma guerra e um concerto.
Você já havia pesquisado muito o Rio desse período para outros trabalhos, mas, mesmo assim, surpreendeu-se agora com a poesia de Ronald de Carvalho. Quão importante ele foi e ainda é, para representar aquela época?
Ronald de Carvalho era um intelectual completo, como muitos naquela época, mas, mais do que os outros, era um homem de ação. Era diplomata e sua agenda era exclusivamente o Brasil, cujos interesses defendeu em inúmeras missões no exterior. Numa época em que o Brasil ainda era quase um puxadinho do Faubourg Saint-Honoré, em Paris, Ronald já pregava uma aproximação com as Américas do Norte, Central e do próprio Sul. E, como poeta, seus livros Toda a América e Jogos Pueris eram revolucionários em ideias, dicção e até graficamente. Tendemos a achar que só é moderno se for poema-piada, mas, em todos os países, o modernismo em poesia se dava numa variedade de metros, estilos e ritmos. Aliás, o próprio Ronald escreveu o verso que é uma aula-relâmpago de modernismo: “Cria o teu ritmo livremente”.
Acredito que ainda haveria dois nomes a serem resgatados, Gilka Machado e Benjamin Costallat, concorda?
Gilka Machado, sim, precisa ser urgentemente lida, para que se entenda o tamanho de sua presença como poeta nos anos 10 e 20 – Mario de Andrade a achava imoral. E Benjamim Costallat, como editor de livros, mudou tudo, mas, como escritor, talvez não resista ao tempo. Outro romancista, Théo-Filho, era muito mais competente e profissional – vários de seus primeiros romances, entre 1921 e 1926, retratam em detalhe aquela época e podem muito bem ser lidos hoje. O importante é que a maioria daqueles escritores tinha preocupações sociais. Théo-Filho, Orestes Barbosa, João do Rio, Romeu de Avellar, Julia Lopes de Almeida e Carmen Dolores, por exemplo, todos conheceram por dentro a Casa de Detenção, que era a maior penitenciária do Brasil, e deixaram fabulosos registros a respeito.
A Revolução de 1930 e sua atmosfera pesada refletia, de uma certa forma, o que acontecia no resto do mundo, com o crash da bolsa de Nova York e a ascensão do nazismo na Europa, certo?
Tudo mudou a partir dali, até mesmo a terminação do último ano da década – de 1929 passamos para 1930. Meu livro trata do que aconteceu no Rio entre o carnaval de 1919, o maior de todos até então, e a Revolução de 30, que dividiu a história do Brasil. Aconteceu tudo. E esse “tudo que aconteceu”, como tentei demonstrar, constituiu a passagem do País do passado, de colarinho duro, para o que depois nos tornamos. Os anos 1920 cariocas foram esse grande caldeirão onde se cozinhou a modernidade.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.