A ação começa em Agra, na Índia, em 1648. Dois soldados imperiais de baixa patente montam guarda noturna diante de uma das mais impressionantes construções humanas, o Taj Mahal, suntuoso monumento de mármore branco que o imperador Shah Jahan mandou construir em memória de sua esposa favorita. Eles não podem vislumbrar a obra, que ainda não está terminada, sob risco de severa punição. É durante, portanto, o turno daquela noite que ao público se descortinam as trajetórias de Humayun e Babur, dois jovens amigos de caráter muito distinto. “E é essa diferença que permitirá o espectador notar importantes aspectos da condição humana”, atesta Rafael Primot, que adaptou e dirige (ao lado de João Fonseca) a peça Os Guardas do Taj.

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Escrito pelo americano Rajiv Joseph, o espetáculo estreia em São Paulo em 13 de janeiro, no Teatro Raul Cortez. Antes, porém, percorre quatro cidades de Portugal neste mês de novembro. “Figurinos e cenários serão os mesmos, mas confeccionados em cada país”, comenta Célia Forte, da produtora Morente Forte, que trabalha com a portuguesa Plano 6 na montagem que estreará em Braga, nesta quinta, 9, e vai passar por Famalicão e Póvoa de Varzim até chegar a Lisboa, no dia 29. A temporada paulista está a cargo apenas da Morente Forte e os ingressos estarão à venda a partir desta terça-feira, 7, no próprio Raul Cortez.

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“O tema da peça é tão universal que independe do local onde é encenada”, atesta o ator Reynaldo Gianecchini, que vive Humayun, homem centrado em sua posição social e obediente às regras. “Eu o vejo como um soldado da Coreia do Norte de hoje, cego às determinações que lhe passam, mesmo que isso possa acabar com o mundo.”

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Ao seu lado, Ricardo Tozzi interpreta Babur, o contestador, jovem inconformado que alguém trace seu destino. “Enquanto Humayun representa o lado racional do ser humano, Babur se destaca pelo lado emocional e, por isso, é tolhido”, conta Tozzi. “Mas eles se completam e, depois de um tempo, vão analisar se tomaram a decisão correta.”

De fato, o autor Rajiv Joseph dramatiza um mito sombrio sobre a construção do Taj Mahal, que, por sua vez, representa uma tenebrosa alegoria sobre a divisão suprema entre poderosos e homens impotentes, que ainda hoje marca diversos povos. “Rajiv construiu seu texto a partir da lenda de que o imperador ordenou que os mais de 20 mil homens que construíram o Taj deveriam ter suas mãos cortadas para que nunca mais criassem algo tão exuberante”, conta Primot que, antes de se decidir por Os Guardas do Taj, estudava montar uma peça sobre pedofilia. “Mas a trama de Rajiv se impôs porque ele explora de maneira brilhante e de forma inteligente uma série de ideias filosóficas.”

Conceitos que questionam se há limites na busca humana pelo conhecimento, quais devem ser as regras para as relações de amizade e a origem de proibições absurdas que muitas vezes são impostas aos cidadãos. Foi esse conjunto de temas que também seduziu Gianecchini e Tozzi que, dispostos a trabalhar com Primot, também preferiram montar o texto de Joseph.

A dupla aproveitou as brechas nas agendas de cada um para ensaiar ao longo do mês de outubro, no Raul Cortez. Momentos em que não apenas o aspecto técnico da montagem foi afinado, mas que permitiram um aprofundamento nas intenções do texto. Em uma dessas tardes, eles conversaram com o Estado. “Meu personagem reconhece, ao fim, que perdeu tudo por justamente sempre seguir a lei, a razão. Ele sucumbe”, diz Gianecchini que, às vésperas de completar 45 anos, no dia 12, aproveita para fazer uma revisão da própria trajetória. “Recordando agora como eu era aos 20 anos, percebo muitas diferenças porque sempre fui aberto e flexível ao mundo.”

“Esse é um dos caminhos aconselháveis para se viver”, completa Tozzi, que aproveita para citar uma célebre frase do pensador grego Sócrates, um dos pais fundadores da filosofia ocidental: “A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. “Esses dois homens têm sonhos que não dão certo e, ao longo do tempo, as verdades vêm à tona e machucam. Isso me faz pensar muito no mundo atual, cuja dinâmica deixa todo mundo angustiado”, afirma Tozzi.

“Sim”, emenda Gianecchini, “a autorresponsabilidade é um tema atual e nos faz pensar que somos os únicos responsáveis pela vida que temos levado. A peça aponta para outros caminhos e nos leva a situações que não são óbvias.”

No camarim, enquanto conversam com a reportagem, os dois atores estabelecem um diálogo espontâneo, com uma troca de provocações intelectuais que flui e consome o tempo, reproduzindo, aliás, o que acontece no palco. A peça começa com Humayun já posicionado como guarda e Babur entra afobado, nitidamente atrasado. A regra de conduta obriga que eles permaneçam em silêncio, com a espada levantada e sem olhar para a construção que está atrás deles, mas Babur, ainda excitado pelo atraso, insiste em falar.

O diálogo é aparentemente frívolo e constantemente usa do bom humor – é o caso do momento em que Babur sonha em ser um guarda do harém imperial, onde espera ver mulheres nuas o tempo todo. Enquanto Humayun insiste em dizer que aquilo é um sonho impossível, Babur libera o pensamento e fantasia sobre elaboradoras máquinas voadoras e as maravilhas que poderão ser encontradas nas estrelas. “Eu acho que Deus quer que aprendamos mais e mais coisas”, diz ele, inebriado com a própria imaginação.

É nesse momento que fica claro para o espectador a profunda diferença que existe entre os dois amigos: enquanto um espírito de rebelde nasce em Babur e o recheia de uma curiosidade inextinguível, Humayun carrega a mais pura ortodoxia obediente, mantendo-se fiel à sua concepção de que a sociedade tem de ser ordenada em torno do poder e sua arbitrariedade caprichosa. “Fica claro, durante o espetáculo, o abismo que existe entre eles”, comenta Gianecchini que, em um determinado ensaio, descobriu uma sensação que também marca seu personagem: a obrigação de ser perfeito. “Humayun busca isso para impressionar o pai e a gente faz o mesmo, ao longo da vida, para diferentes pessoas. Vivemos eternamente marcados pelo embate entre a razão e a emoção.”