Fernanda Montenegro desperta atenção pelos olhos – grandes, inquisidores, investigativos. Em cena, na vida ou no palco, suas palavras têm o peso da veracidade. “Não se sabe o que mais admirar nela: se a excelência de atriz ou a consciência, que ela amadureceu, do papel do ator no mundo. Ela não se preocupa somente em elevar ao mais alto nível sua arte de representar, mas insiste igualmente em meditar sobre o sentido, a função, a dignidade, a expressão social da condição de ator em qualquer tempo e lugar”, observou, certa vez, Carlos Drummond de Andrade.
Exemplo de artista em um país em que essa atividade gera controvérsias, Fernanda se aproxima dos 90 anos de vida (festeja no dia 16 de outubro) com um vigor invejável. “Enquanto eu me manter andando por conta própria, com a memória boa e uma audição razoavelmente perfeita, pretendo continuar trabalhando”, brincou ela na manhã desta quinta, 19, quando conversou com o Estado por telefone. Foi, na verdade, uma maratona de entrevistas para o lançamento, nesta sexta, de Prólogo, Ato, Epílogo (Companhia das Letras), livro de memórias em que relembra desde a chegada dos avós ao Brasil até seus mais recentes trabalhos, como o filme A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, que só estreia no dia 31 de outubro.
Trata-se de um projeto de longa gestação – entre julho de 2016 e novembro de 2017, a jornalista Marta Góes realizou dezoito entrevistas com a atriz. A partir do material recolhido e transcrito por ela, Fernanda se debruçou sobre a própria história, entre novembro de 2017 e agosto de 2019, para dar o contorno final. “Hoje, percebo que muitos fatos ficaram de fora, mas o essencial está ali”, explica ela, que assumiu a tarefa movida por um motivo especial. “Aceitei o convite da editora pensando em meus três netos. Eu gostaria que eles soubessem da história de seus descendentes.”
Tal entendimento sempre foi caro para Fernanda Montenegro, que presenciou importantes mudanças sociais e políticas no Brasil em quase sete décadas de carreira artística – sua estreia no palco aconteceu em 1950, com a peça Alegres Canções na Montanha. No livro autobiográfico, os problemas artísticos caminhavam em paralelo com os do País, a ponto de, em um determinado ponto do relato, ela acreditar na existência de dois Brasis: um com problemas de saúde e educação e outro que nunca esteve melhor.
E como ela vê hoje o País? “Um país indo para o lado de um novo conceito religioso”, conceitua, em uma fala pausada e muito pensada.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.