Um dia de 1978, entrei na pequena livraria Avanço, na Rua Aurora, a poucos metros da Avenida São João, em São Paulo e comprei um volumoso livro chamado Ulisses, do Sr. James Joyce.
Tinha ouvido falar cousa e lousa de ambos e estava disposto a encarar. Saber o que era, que tinha demais.
Uma semana depois de avançar até a metade, parei. Estava mais perdido que lombriga em asfalto quente.
Então descobri: alguns livros são como valentões de rua, você só encara com ajuda. Senão, leva cacete. Ulisses era um.
Estes livros são cheios de melindres, inóspitos, como ralis no interior do Brasil: é preciso muita vontade para ir em frente. Depois fiquei amigão de Ulisses e até comprei de presente alguns para uns considerados, que acharam estranho eu gostar daquilo.
A esta altura eu já sabia que havia um valentão ainda mais feroz naquela rua, um tal Finnegans Wake, do mesmo James Joyce, naqueles anos sem tradução integral no Brasil e praticamente ilegível por qualquer sujeito que falava inglês, porque soava grego louco falando russo.
Deste livro, havia apenas um pequeno volume traduzido pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos chamado Panaroma do Finnegans Wake, que comprei ainda no final dos anos 70 em São Paulo e que me deu ideia da aventura que seria o volume inteiro. Não era fácil.
Anos depois um gaúcho chamado Donaldo Schüller topou o desafio de traduzir a obra completa. E fez Finnicius Revém. Mas o livro, para compensar o investimento em tempo e não sei mais o quê, foi publicado em volumes, o que tornou o preço elevado demais. E proibitivo para assalariado.
Bem, Finnegans Wake continua por aí, desafiando incautos pelas ruas da literatura mundial. Mas como todo valentão fica velho, hoje em dia ele não assusta mais, embora continue a impor respeito em qualquer um.
Tanto não assusta que uma mulher resolveu encarar o valentão. E antes que diga que sou mais um porco chauvinista neste chiqueiro humano, recorro ao próprio James Joyce que disse: “Eu odeio mulheres que não sabem nada”. Mas ele nunca disse: “Eu odeio homens que não sabem nada”.
Engraçado ele falar isto, porque Joyce não deixou as mulheres sossegadas. A começar pela patroa, Nora Barnacle, de quem surrupiou a fala fluída para compor o monólogo de Molly Bloom, no final de Ulisses. Sem contar um volume de cartas que enviou para a dona que é de deixar corado qualquer corintiano de Diadema.
Vamos em frente. Pois bem. Uma senhora chamada Dirce Waltrick do Amarante encarou as traduções existentes no Brasil, foi na Irlanda, pesquisou e produziu um livro chamado Para ler Finnegans Wake de James Joyce (Editora Iluminuras, 168 páginas, R$ 35,00).
Dona Dirce simplesmente propõe uma tradução feminina para o valentão da rua. Ousadia ou não, é o preço que Joyce aceitou pagar quando entrou no ofício. Afinal, não foi ele quem por ocasião da construção de Ulisses disse estar fazendo uma obra para deixar ocupados professores e especialistas por 200 anos? Eles estão ficando malucos e a culpa não é deles.
No Brasil, a tradução de Ulisses feita por Antonio Houaiss já foi considerada erudita e complicada pela Sra. Bernardina Pinheiro, que propôs uma mais coloquial – propôs e fez.
Hoje em dia podemos nos dar ao luxo de ter duas traduções de Ulisses: uma complicada e outra sem complicação. Coloquial como se diz. Joãozinho Trinta diria: “Um luxo!”.
Dona Dirce faz algo semelhante. Ela nos brinda com o capítulo VIII de Finnegans Wake, mais precisamente Anna Livia Plurabelle, o mais conhecido de todos, para dar uma entonação feminina à narrativa. O que Joyce diria? Não tenho a menor idéia.
Para o leitor não morrer de curiosidade, vai um exemplo: “Lembra-te do teu alvô! Pensa na tua Ma! Hing the Hong é o teu hangnome de jove! Canta um bolero, burlando um mandamento!
Ela jurou sobre o acrostifixo nove seguidas vezes que ela venceria todos os seus obstáculos novamente. Pela Vulnerável Virgem Mary del Dame”. E vai adiante. Claro que isto é prosa límpida se batermos de frente com o que encontramos no Panaroma, dos irmãos Campos.
Se o leitor ,mais curioso pegar a tradução de Schüller pode comparar e ver o resultado. Claro que o livro de Dona Dirce Waltrick não se resume a tradução de um capítulo, para propor outra forma de verter a obra para o nosso vernáculo.
Ele serve de introdução, guia turístico e aí reside sua utilidade, dar significados importantes ao leigo ou interessado em entrar na selva de palavras e frases de inflexões quase guturais de Finnegans.
Afinal, embora para o leigo à primeira vista aquilo possa não ter sentido algum, ele pode se ferrar de cara: tudo aquilo tem sentido. E ele não terá a menor ideia, se não correr atrás. Joyce queria escrever uma espécie de história do mundo.
Claro que o leitor vai tirar zero em história se for ler Finnegans antes de uma prova de história. O sujeito, no caso Joyce, estava fazendo literatura e não manual de segundo grau.
Então é uma história do mundo escrita de forma que ninguém percebe que é a história do mundo. A radicalidade de Finnegans, para quem for mais descolado, já pode ser pressentida em algumas partes de Ulisses, justamente aquelas em que o leitor comum não entende nada e fica perguntando o tempo todo: “O que ele quis dizer com isto?”.
Joyce diria que Ulisses é um livro do dia, por isso claro e límpido e Finnegans da noite. O sujeito pode pensar que Joyce está de gozação, afinal os irlandeses são terrivelmente bem humorados. Mas, depois de certo tempo ele vai concluir que o homem está falando sério.
E, pior, se Finnegans é o livro dos ruídos noturnos, nem adianta procurar roncos por lá, que não vai encontrar: Joyce não dormia no ponto e seu livro está mais para o sonho.
E para não ficar perdido ou passar recibo de ignorante, o bom mesmo é o leitor recorrer a alguém que passou boa temporada tentando entender aquilo para explicar a outro.
Afinal, é preciso entender que Joyce passou vinte anos da vida tentando deixar o livro com a cara exata de um labirinto. E ninguém faz um labirinto para a gente entrar e sair vinte minutos depois. É para se perder lá dentro, maluco, ficar de cabeça quente e deixar Joyce todo pimpão lá em cima: “Dei nó na cabeça de mais um lá embaixo!”.
Aí é que reside a graça da coisa, para nós, leitores: provar para o sujeito lá em cima que a gente consegue entrar e sair daquele labirinto sem ficar doido. O diacho é que a maioria das pessoas nem tenta e a maioria das que tenta se perde; isto quando não fica doida.
Mas com alguma ajuda, é possível ir até o fim. E sair. Inteiro. Dona Dirce fez a parte dela. É uma mãozinha, mas quem está na areia movediça sabe que uma mãozinha pode ser uma manzorra.