Não é preciso ser intelectual ou descolado para gostar de Akira Kurosawa.

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Basta gostar de bom cinema que o sujeito põe o cineasta japonês na lista de seus preferidos.

Uma série de elementos contribui para a empatia: os filmes de Kurosawa são aparentemente simples, bem resolvidos, tem emoção, ação, um pouco de humor e independente do estilo da fita, são produções que cativam o espectador.

As pessoas hoje em dia usam um adjetivo para isso: impactante. Os filmes de Kurosawa de uma forma ou de outra, são impactantes. Claro que um sujeito descolado vai encontrar maneirismos, técnicas, sutilezas e outros detalhes, como referências literárias, encravados aqui e ali que só contribuem para aumentar o prestigio de Kurosawa.

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O diretor tinha fama de centralizador e autoritário, que contribuiu para a alcunha de “O Imperador”, adjetivo que jornalistas japoneses aplicavam mais por ironia e para aporrinhar o cineasta, a quem também acusavam de excessivamente ocidental.

Ocidental ou oriental, o certo é que Kurosawa é o maior cineasta japonês de todos os tempos e um dos grandes mestres do cinema mundial. E tinha mão para conduzir filmes, de espantar qualquer um. Foi reverenciado por quase todos os bons diretores de seu tempo e pelos bons que vieram depois. Ninguém contesta.

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Poucos filmes dele são ruins e muitos podem ser colocados na prateleira de clássicos, sem contar que a lista oscila de acordo com o gosto de cada um. Os Sete Samurais é um dos mais copiados da história do cinema: além de clássico, deu origem a outro, no faroeste americano, Sete Homens e um Destino”. Coisa rara. Dodeskaden, considerado fracasso, levou o cineasta a tentar suicídio.

Muita coisa pode ser dita de Kurosawa, mas o que interessa aqui é um de seus hábitos: trabalhar com um grupo de atores que conhecia o mestre e era conhecido por ele.

Se dá de barato que Toshiro Mifune é um dos maiores, talvez o maior ator de cinema japonês de todos os tempos, escalado por muitos diretores ocidentais. Mas muito deste prestígio deve a Kurosawa, que esculpia papéis que se encaixavam perfeitamente no ator.

O prestigio de Mifune foi tão grande que de certa forma colocou em segundo plano o talento de outros atores que gravitavam ao redor de Kurosawa. Não é preciso assistir a pelo menos uma dezena de filmes do diretor, antigos principalmente, para perceber que Takashi Shimura é sem favor algum um dos maiores atores da história do cinema e na cinematografia de Kurosawa sua importância é tão relevante quanto a de Mifune.

Na realidade, embora Mifune esteja para Kurosawa assim como John Wayne está para John Ford, Shimura apareceu em mais filmes importantes do cineasta que Mifune, sem contar presença em filmes menores.

A colaboração de cineasta e ator iniciada em 1943 com Sugata Sanchiro se estendeu até 1980, em Kagemusha, dois anos antes do ator morrer, com um papel escrito por Kurosawa especialmente para Shimura. Papel que desapareceu na versão ocidental do filme.

Bastaria o papel do ronin Kambei em Os Sete Samurais para o consagrar. Shimura está perfeito como o contido chefe dos samurais que aceita em troca de comida a proposta de um grupo de camponeses para defender a sua aldeia de assaltantes.

Kambei é o grande samurai perdido no meio de uma guerra civil, servindo a quem pagar mais e faz duelo de interpretações com Toshiro Mifune, no papel de Kikuchiyo, sujeito meio vagabundo, fanfarrão, atrapalhado e desengonçado, que quer ser aceito como samurai.

Depois descobre-se que Kikuchiyo não passa do filho de um camponês, perdido no mundo. No duelo de interpretações entre os dois quem vence é o espectador. Antes deste filme de 1955, Shimura fez outro, um dos melhores filmes de todos os tempos, um grande estudo sobre velhice e vida que é Ikiru (Viver), de 1952.

Este filme, como a maioria dos filmes de Kurosawa, é longo, especialmente para os padrões atuais. E deve dar sono nos espectadores de hoje em dia que bocejam se não encontram cenas de violência e saca- nagem de três em três minutos. Mas devemos levar em conta que o cinema antigo não concorria com a internet, games, televisão, tevê a cabo e uma série de mídias alternativas.

Embora longo, Ikiru pode ser visto em duas etapas: a primeira parte e a segunda formam praticament,e dois filmes diferentes sobre o mesmo fato, a morte de Kanji Watanabe, um funcionário público que se descobre com câncer e percebe não ter feito nada importante na vida, além de um filho totalmente alheio à existência do pai.

Descobrir uma razão para viver em pouco tempo de vida é o mote de Ikiru. A cena em que Watanabe embriagado num bordel pede para o pianista tocar uma canção e ele canta numa voz rouca e cavernosa os versos “A vida é tão curta, se apaixone querida donzela, enquanto seus lábios ainda são rubros, e antes que você se esfrie, pois não haverá amanhã”, é de arrepiar.

Neste filme há um personagem que desempenha o papel de Mefisto, sujeito que tenta mostrar as coisas belas da vida, para reanimar o desanimado Watanabe. Trata-se de o Escritor (Yunosuke Itô). Ele é quem vai dando os toques filosóficos.

“Olhe bem para ele. Vê? Ele é deus e está carregando uma cruz chamada câncer. A maioria das pessoas morre no minuto em que fica sabendo disso. Ele não. Ele é diferente. Daquele minuto em diante ele começou a viver”. O sujeito é um mala simpático.

Escritor tem tiradas humoradas, como em todos filmes de Kurosawa, mesmo os mais trágicos. Escritor leva Watanabe a um show de strip-tease, não gosta do que vê e diz: “Isto não é arte. Um strip-tease não é arte. Muito direto. O corpo daquela mulher ali em cima é um tremendo bife suculento, é um copo de gim, é extrato de hormônio, estreptomicina, urânio”. Uma observação totalmente irrelevante para quem vai morrer, mas divertida para quem está vendo o filme.

Na segunda parte do filme, pessoas que conheceram Watanabe estão no velório do funcionário público e recordam as virtudes que não reconheceram quando ele era vivo. Kurosawa disse a propósito de Ikiru que “às vezes penso em minha morte”.

E foi de pensar na sua morte, que ele fez um grande filme sobre tema tão difícil que é a morte, a velhice é o doente terminal. Um filme no qual Shimura dá um comovente show de interpretação. Raro, muito raro, encontrar algo semelhante hoje em dia.

Embora a carreira de Shimura contém presença em diversos papéis de filmes japoneses sobre monstros, incluindo o cientista Kyohei Yamane nos Godzilas da vida, os vinte e dois filmes que fez com Kurosawa formam uma obra de raro fôlego.

São poucos atores na história do cinema que ostentam portfólio do mesmo calibre. Nela encontramos obras interessantes do Japão feudal como Tora no o wofumu otokotachi (Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre), baseado na peça Kabuki Kanjincho, por sua vez baseada na peça Nô Ataka.

O filme chegou a ser banido pelos americanos durante a ocupação do Japão, depois da Segunda Guerra, sob a alegação de retratar valores tradicionais japoneses.

Shimura está ainda em pelo menos dois filmes essenciais da cinematografia de Kurosawa: o fascinante Yojimbo, em que faz o papel de Tokuemon e o desconcertante Rashomon, no papel do lenhador.

Este último, de 1950, foi cartão de visitas do cineasta e do cinema japonês no Ocidente. A estrutura narrativa revela uma história com versões distintas de acordo com a testemunha que relata.

O impacto do filme foi parar na psicologia que batizou de Efeito Rashomon a situação em que a versão de um fato varia de acordo com o prisma diferente em que é visto. Por tudo isto é preciso reconhecer: embora discreto, o Sr. Shimura foi um gigante.