Ópera ‘Salomé’ traz uma terra devastada de desejos

Se o desejo move o ser humano, talvez seja justo dizer também que uma das marcas que nos define é justamente a incapacidade de lidar com sua intensidade. É dele que nascem – ou a ele são acoplados – paixões, amores, medos, inseguranças, traumas, pressentimentos. E é esse universo o cenário no qual se desenrola a ópera Salomé, de Richard Strauss, que faz temporada atualmente no Teatro Municipal.

A obra narra a história da princesa Salomé que, tomada pela atração por João Batista, barganha com a própria sensualidade para convencer seu padrasto Herodes a lhe oferecer como prêmio a cabeça do profeta, que se recusa a ceder a seus encantos. E o faz por meio de uma partitura que, no início do século 20, aponta na direção da modernidade.

À música de tom quase elegíaco associada a João Batista, o compositor justapõe uma escrita angulosa que caracteriza tanto Salomé quanto Herodes. E esses dois universos, aos poucos, se tornam indissociáveis, em uma partitura que se torna fragmentada ao mesmo tempo em que mantém fluxo narrativo mais amplo e ininterrupto.

Encontrar o equilíbrio entre esses dois universos é por si só um desafio. Mas a regência de John Neschling vai ainda além: à frente de uma Sinfônica Municipal de desempenho impecável, o maestro dá ritmo teatral ao espetáculo e revela as entranhas da partitura, onde estão escondidas possibilidades expressivas das mais diversas.

À qualidade da execução musical se somam os méritos da montagem da diretora Lívia Sabag. Perante uma partitura tão visceral, ela opta por cenários de tons cinzentos, quase neutros, que colocam o foco na música – e, do ponto de vista cênico, na direção de atores. A sensibilidade como é construída a cena final, por exemplo, em que Salomé dialoga com a cabeça decepada do profeta, é impactante, assim como a opção por distribuir a Dança dos Sete Véus por sete bailarinas ressalta o caráter simbólico que, mesmo no começo do século 20, também faz parte do arcabouço inspiracional de Strauss.

O elenco da récita da noite de terça foi o mesmo da estreia, no sábado. Impossível não ressaltar a Salomé de Nadja Michael, o João Batista de Mark Steven Doss ou o Herodes de Peter Bronder (que esteve no Brasil no ano passado, cantando no Ouro do Reno, de Wagner).

Mas, de certa forma, é a homogeneidade dos cantores, dos papéis menores (o pajem de Lidia Schaeffer, o Narraboth de Stanislas de Barbeyrac, entre outros) aos protagonistas, que ajuda a fazer desta montagem um dos principais espetáculos da história recente do Municipal de São Paulo.

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