Confesso que uma das experiências mais fascinantes da minha vida foi ter conhecido “in loco”, nos idos de oitenta, a Inglaterra e outros países europeus. Para chegar à mesma clássica conclusão de um romântico nosso do final do século dezenove: “não há, sob o céu de anil/país mais belo que o Brasil…” Embora a métrica claudicasse, a idéia era robusta, vertical.
Seja como for, e amparado no “de gustibus…”, confesso que, de todas as nações do Velho Continente que conheci, foi certamente a Inglaterra que mais me encantou, durante o périplo inesquecível. A começar pela antiga Londinium romana, a Londres contemporânea hierática e solene, grandiosa, que até hoje mantém o ar imperial.
A verdade é que eu já estava predisposto, de antemão, a gostar da Old Albion. Isso graças à propaganda subliminar irresistível a que fui submetido durante muitos anos, por uma plêiade de escritores – poetas e romancistas – que fazem da literatura inglesa a única a disputar à francesa o cetro da primazia. A disputar e a ganhar, penso eu. Lembro alguns nomes emblemáticos que me fizeram amar a Inglaterra mesmo sem conhecê-la: Milton e Srakespeare, Swift e Defoe, Sterne e Dickens, Jane Austen e George Eliot, Tennyson e Keats, Done e Shelley, Hardy e Henry James, Chesterton e Maugham, Wilde e Shaw, Yeats e T.S. Eliot, Conrad e Virginia Woolf, Forster e Graham Greene, Durrel e Golding “and so on”.
Ocorre-me adicionar a essas influências marcantes, um livro interessante lido na juventude, o “John Bull” de Ramalho Ortigão. Lá talvez se encontrem as explicações, de ordem racional, emocional e sentimental, para a minha irreprimível anglofilia. Preciso revisitá-lo.
Não obstante, não desmereço, não minimizo, não subestimo as belezas e os encantos mil da Espanha e da Alemanha, da França e da Itália, da Holanda e da Bélgica, da Áustria e da Suíça. Sem esquecer, é claro, o reencontro com o pequenino Brasil europeu “à beira mar plantado”, lá onde a terra se acaba e o mar começa…
Mas sou obrigado a admitir (já que irei falar de culinária) que foi na Inglaterra que eu comi, não digo pior, mas menos bem. Desconfiei, na altura, de que a constatação fosse fruto de um preconceito subterrâneo contra a culinária inglesa. Ledo engano. Verificaria depois que a minha impressão não era única, nem sequer minoritária.
Agora mesmo vem em meu socorro alguém que se chama Oscar Wilde. Num artigo antigo, mas precioso, o mestre de “O retrato de Dorian Gray” justifica amplamente as teses desfavoráveis à cozinha inglesa.
Comecemos pelo fragmento seguinte: “A real dificuldade que temos que enfrentar na Inglaterra não é tanto a ciência culinária, mas a estupidez das cozinheiras. Sua completa ignorância sobre ervas, sua total inabilidade para fazer uma sopa que seja algo mais do que a combinação de pimenta e molho de carne, seu hábito inveterado de cobrir faisões com um simulacro de cataplasma de pão, todos esses pecados são desmascarados pelo autor”. O articulista, Oscar Wilde, está se referindo ao autor do livro objeto da sua resenha crítica, “Dinners and dishes” (Jantares e pratos).
E o célebre dândi de orquídea exuberante na lapela, longos cabelos louros caindo sobre os ombros, roupa espalhafatosa e expressão “blasée”, continua, ferino e contundente: “O livro é breve e conciso, e não há muito espaço para a eloqüência, o que é extremamente agradável. Ele ainda tem a vantagem de não ser ilustrado. O tema de uma obra de arte nada tem a ver com a beleza, mas é sempre algo deprimente ver a litografia colorida de uma perna de cordeiro cozida ou assada”.
Com a sua típica ironia e proverbial sarcasmo wildeano, ele prossegue, vai em frente: “A cozinheira inglesa é uma tola que deveria ser tranformada numa pilastra de sal. Um sal, inclusive, que ela nunca, nunca sabe ao certo como usar”. E o grande escritor adepto da “arte pela arte”, conclui assim a sua catilinária de gastrônomo “connaiseur”: “Há vinte maneiras de se cozinhar uma batata e 365 modos de se fazer um ovo, mas a cozinheira inglesa sabe apenas três formas de preparar uma e o outro”.
O texto referido foi publicado em 7 de março de 1885, na famosa “Pall Mall Gazette”. Aquela que, mais ou menos na mesma época, suscitou a Eça de Queirós uma das suas crônicas mais pitorescas e hilariantes. Mas que dizer das afinidades estéticas (e existenciais) entre o criador do “De profundis” e o autor da famosa “Correspondência”, Fradique Mendes? Penso que este veste o mesmo figurino de Oscar Wilde. Chego a me perguntar, algo perplexo, se “o pobre homem da Póvoa do Varzim”, quando da sua permanência na Inglaterra, exercendo a função de cônsul, teria ou não conhecido, de vista ou de leitura, o excêntrico e polêmico autor inglês (ainda que nascido na Irlanda também de Shaw, Swift, Yeats e Beckett). Não possuo dados nem informações para responder a tal pergunta. Não posso, porém, esconder a nítida impressão de que o mestre do dandismo, do diletantismo e do esteticismo pode muito bem ter sido o modelo do também dândi, diletante e esteta que se chamou Fradique Mendes, o poeta “excelso” das “Lapidárias”…