Bem-humorado, o maior escritor latino-americano se descrevia, de forma jocosa, como “cineasta frustrado””. Havia chiste na frase. Mas nem tanto. Gabriel García Márquez amava o cinema e esteve envolvido em atividades cinematográficas ao longo de quase toda a sua vida. O cinema o recompensou em seu amor, levando para as telas mais de 20 adaptações de suas obras literárias.
Para se ter ideia de como Gabo levava a sério o cinema, basta lembrar que, em companhia de amigos como Fernando Birri, Julio García Espinosa, Gutierrez Alea e outros, estudou, no início dos anos 1950, no então mitológico Centro Experimental de Roma, tido como berço do neorrealismo italiano e das ideias cinematográficas mais avançadas da época. O Norte do cinema contemporâneo passou pela Itália. E lá, Gabo aprendeu muito, mas colocou pouco em prática.
Ele mesmo dizia, em tom de autoironia, que sua participação efetiva no mundo do cinema se resumiu à função de terceiro assistente em uma filmagem do italiano Alessandro Blasetti. Acrescentava que sua função consistia em segurar uma corda de isolamento para que as filmagens não fossem perturbadas por curiosos.
O cargo, embora modesto, lhe trouxe grandes satisfações, a maior delas a possibilidade de conhecer de perto a protagonista da história, ninguém menos que Sophia Loren no auge da beleza e juventude. Que filme seria esse? Gabo não diz, mas pela época e presença de La Loren no elenco pode ser tanto Bela e Canalha (Peccato Che Sia Uma Canaglia) como A Sorte de Ser Mulher (La Fortuna di Essere Donna), ambos de 1955.
A sério, Gabo fundou e dirigiu uma das principais escolas de cinema do continente – A Escuela de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba – e escreveu diversos roteiros para serem filmados por seus amigos cineastas. Por exemplo, Tempo de Morrer, rodado por Arturo Ripstein, que depois se tornaria o maior nome do cinema mexicano contemporâneo. O mesmo roteiro depois foi refilmado pelo compatriota de Gabo, o colombiano Jorge Ali Triana, já nos anos 1980. Triana filmaria ainda outro roteiro de Gabo, Oedipo Alcalde (1996), um aggiornamento do mito de Édipo para a Colômbia contemporânea, que concorreu no nosso Festival de Gramado. Em Cuba, que o escritor considerava sua segunda casa, escreveu vários roteiros como Maria de Mi Corazón, de Jaime Humberto Hermosillo e o argumento de Mi Querido Tom Mix, filmado por Carlos García Agraz.
Escritor de repercussão internacional após o boom da literatura hispano-americana, Gabo teve obras literárias adaptadas em outros continentes. Por exemplo, o grande cineasta italiano Francesco Rosi (autor do clássico Bandido Giuliano) verteu para a tela sua Crônica de Uma Morte Anunciada (1986), produção falada em inglês e destinada ao mercado internacional.
Aqui mesmo no Brasil a obra de García Márquez ganhou várias adaptações, todas elas assinadas por Ruy Guerra, amigo do escritor.
Guerra (autor de clássicos do cinema brasileiro como Os Cafajestes e Os Fuzis)
verteu para a tela o livro A Verdadeira História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada. Ficou sendo apenas Erêndira (1980), personagem vivida pela atriz Cláudia Ohana. A avó é interpretada pela grande atriz grega Irene Papas. Guerra trabalhou a obra de Gabo também em A Bela Palomera (1988) e a minissérie, para TV, Me Alquilo para Soñar (Me Alugo para Sonhar). Mais recentemente, desencavou um romance um tanto esquecido do colombiano, La Mala Hora, para dele tirar o cerebral Veneno da Madrugada (2006).
Com o passar dos anos, o interesse do cinema pela obra mais recente de García Márquez não deu sinais de declínio. Outro título forte nas livrarias, Ninguém Escreve ao Coronel (1999) atraiu mais uma vez a atenção do mexicano Arturo Ripstein. Mike Newell filmou o best-seller O Amor nos Tempos do Cólera (2007), no qual Fernanda Montenegro faz parte do elenco. Memórias de Minhas Putas Tristes (2011) foi para as telas sob direção do dinamarquês Henning Carlsen, baseado em roteiro assinado pelo próprio Gabo e pelo francês Jean-Claude Carrière (que escreveu os scripts da maioria dos filmes de Luis Buñuel em sua fase francesa).
É estranho que a espetacular literatura de Gabriel García Márquez não tenha produzido nenhuma grande obra no cinema. Há filmes bons, dignos, interessantes, mas que não vão muito além disso. Ficam sempre a dever aos textos dos quais se originam. Hitchcock dizia ser muito mais fácil filmar livros medíocres do que obras-primas literárias. Estas criam uma expectativa excessiva e dão margem a comparações, em geral, desfavoráveis para os cineastas.
Não por acaso, talvez, justamente a obra-prima literária de Gabo, Cem Anos de Solidão, não foi adaptada para o cinema. Obra portentosa, teria amedrontado os cineastas a ponto de paralisá-los? Como botar na tela a complexa e barroca dinastia dos Buendías? Existem lendas a respeito. Uma delas, talvez próxima da realidade, diz que Gabo teria tanto ciúme do romance que lhe deu o Prêmio Nobel que jamais se decidiu a vender os direitos, por tentadoras que fossem as ofertas.
Ele mesmo, de vez em quando, dizia que aumentava o preço a cada vez que via alguém realmente disposto a comprar. Não queria vender.
Há outro dado digno de interesse. O “cineasta frustrado” Gabriel García Márquez teve um filho, Rodrigo García, que de fato se tornou diretor de cinema. Os filmes de Rodrigo, como o delicado drama familiar Destinos Ligados (2009), pouco têm a ver com o intrincado universo do realismo fantástico do pai. Será que encararia o desafio de levar para a tela uma catedral literária do porte de Cem Anos de Solidão? As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.